quarta-feira, 14 de junho de 2023

Não-ser

A longa obsessão da humanidade com a existência no além é o resultado de um erro filosófico

Simon Blackburn

Falei sempre da morte como extinção, e ignorei a alegada possibilidade de uma vida depois da morte. Parece-me que só temos a tentação de pensar que conseguimos dar sentido a esta ideia devido ao erro acerca de imaginação que já confrontamos. A longa obsessão da humanidade com a existência no além é o resultado de um erro filosófico.

Há quem talvez considere que consegue pensar na vida além da morte à imagem desta vida: a alma é uma espécie de fantasma, uma versão feita de sombras de uma pessoa, o tipo de coisas que as pessoas afirmam ver, e que consideram tratar-se de embaixadores do mundo dos mortos (apesar de ser muitíssimo significativo que, visto os fantasmas tenderem a estar totalmente vestidos, as suas roupas são também presumivelmente embaixadoras do domínio dos panos mortos e das armaduras mortas).

Como projeções dos nossos próprios estados mentais, estes fenômenos podem ser bastantes reais: uma casa em que morreu um dos cônjuges ou uma criança fica realmente assombrada pela sua ausência, isto é, pela consciência dolorosa da parte dos vivos de que o cônjuge ou a criança já não está ali, e consequentemente pela imagem perturbadora de que ainda ali estão.

Mas ser assombrado por uma ausência não é ser assombrado por um tipo de coisa, tal como a ausência de crocodilos em Inglaterra não é um tipo de coisa, um embaixador do mundo das sombras do Não-ser dos crocodilos ingleses.

Não é uma coisa assim tão misteriosa, mas antes o fato perfeitamente sem mistério de que não há coisa alguma, seja pessoa ou crocodilo. Em casos nos quais até recentemente havia algo ou alguém, isso pode em si ser algo terrível, de lamentar ou de lastimar.

Calculo que secretamente espero, como tantos outros, que os amigos e a família fiquem pelo menos um pouco tristes quando me acontecer a mim, que espero ser apenas depois de uma idade avançada benigna, entretendo-me com várias coisas e corrigindo as minhas obras filosóficas. Mas será algo que me incomode.

Título e Texto: Simon Blackburn, in “As grandes questões da Filosofia”, páginas 247 e 248
Digitação: JP, 14-6-2023

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Um comentário:

  1. MARAVILHA, concordo em número, gênero e assino embaixo, não psicografia de inúteis.

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