quinta-feira, 15 de junho de 2023

A metáfora da TAP

Henrique Pereira dos Santos

David Neeleman escreve hoje no Observador, tratando uma série de governantes de mentirosos para baixo.

Diz mais coisas e, mais relevante, aponta para uma série de factos.

Se tem razão ou não no que diz, não sei, tendo a acreditar mais em Neeleman que em António Costa e afins, mas reconheço que isso não passa de uma fé.

Em qualquer caso, compreendo que se Neeleman tiver razão em grande parte do que diz, está explicado o problema do governo com a TAP (não é que não estivesse antes).

O governo, para ajudar a garantir o apoio do PC e do BE, com toda a legitimidade política porque sempre disse que o ia fazer, reverteu a privatização da TAP.

António Costa, tanto quanto consigo perceber, não é um lunático que negue a realidade, bem pelo contrário, é uma pessoa bem lúcida e muito atento à realidade.

Mas tem uma característica que o torna um temível adversário político, embora um medíocre estadista: o poder não lhe interessa para alterar a realidade (se a alterar para melhor, óptimo, mas é um benefício marginal), o que lhe interessa é a realidade que lhe permite manter o poder.

A sua atenção para com a realidade não decorre da necessidade de a conhecer bem para poder intervir nela, mas da necessidade de a conhecer bem para organizar os factos em narrativas que sirvam o seu poder.

Resumindo, no caso da TAP, era-lhe mais ou menos indiferente se a TAP era estatal ou privada (como se demonstra pela tranquilidade com que agora fala da privatização), do que precisava era de reverter a privatização para ter apoio interno no PS e externo do PC e do BE.

Para isso, tinha de organizar os factos numa narrativa que lhe permitisse fazer isso: 1) dizer mal do acionista privado que fosse mais fácil diminuir aos olhos da opinião pública (o estrangeiro capitalista, ganancioso e golpista); 2) Dizer mal do processo de privatização responsabilizando Passos Coelho por tudo, incluindo pela obrigação de privatização que estava no acordo assinado por Sócrates e o PS; 3) Exagerar a importância da empresa; 4) Assustar os trabalhadores com o fim da empresa, enfim, essas trivialidades.

Como não tinha dinheiro, deixou ao acionista a substância das coisas, ao mesmo tempo que, decorrente da narrativa, enchia aquilo de verbos de encher que não mandavam nada, mas lhe permitiam dizer que tinha revertido a privatização.

Quando a coisa correu mal, por causa das medidas tomadas durante a pandemia, mas sobretudo porque os tais verbos de encher acharam que conseguiam mesmo gerir companhias aéreas, Costa teve de se atravessar com dinheiro, procurando desesperadamente manter a narrativa que se ia esboroando lentamente, à medida que a realidade impunha uma nova privatização.

O problema da comissão de inquérito é a possibilidade de destruir a narrativa laboriosamente construída, pondo a nu a irracionalidade da decisão de reverter a privatização e o erro político brutal que António Costa resolveu assumir para facilitar o seu acesso ao poder, com custos para os contribuintes que ultrapassam largamente o que os eleitores aceitam sem pestanejar.

Ou melhor, o problema da comissão de inquérito é ser apenas uma janela escancarada sobre os bastidores do poder de António Costa: uma luta constante para organizar a realidade em narrativas que sejam úteis à manutenção do poder, independentemente do sentido de Estado de grande parte das decisões que o governo vai tomando.

O problema não é a TAP, o problema é a TAP ser uma metáfora de todo o consulado de António Costa: medidas populistas para garantir o poder, justificadas com narrativas em que os factos se organizam da forma conveniente, sem grande consideração pelos efeitos negativos na vida das pessoas e das instituições.

Deus tenha piedade dos herdeiros de Costa, que a minha bondade não chega a tanto. 

Título e Texto: Henrique Pereira dos Santos, Corta-fitas, 14-6-2023

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