Carina Bratt
RECORDANDO A PARTE ‘UM’, o rei levou os três filhos até o portal do suntuoso palácio, assoprou três plumas, observando que aquele que trouxesse o melhor tapete, ocuparia seu lugar quando viesse à óbito. Das três plumas, todas sumiram. Contudo, a terceira, ao perder terreno, o fez numa clareira próxima de onde os consanguíneos empreenderam a jornada. João Bocó, desanimado, chateado e deprimido, mergulhou num pranto silencioso e se viu impotente.
Pior, se fechou num semblante triste e macambúzio, sem um pingo de esperança para vencer aquela dura contenda que prometia ser implacável, incitante e concorrida. Os dois irmãos mais ladinos e safados, igualmente maquiavélicos e trapaceiros, antes de partirem, motejaram sobre o mais novo, ou seja, sacanearam, zombaram de sua personalidade, chacotearam da sua humildade a ponto de o colocaram para baixo em total falta de respeito e perversidade.
Devemos ter em conta, desde os mais remotos tempos, o Bem sempre venceu o Mal. Minhas amigas e leitoras recordam que no término da primeira incumbência, João Bocó, logrou êxito, apesar dos prós e contras colados nas entranhas do seu imenso infortúnio e desdita. Apesar de todos os ventos soprarem nefastos aos seus objetivos, João Bocó se sagrou vencedor, deixando, logicamente, o ‘rei-pai’ satisfeito. Quando os irmãos inconformados não aceitaram a prenda por ele trazida, tampouco a subida ao trono, o rei se viu obrigado a pensar numa outra alternativa.
Foi a vez do anel. A história dá conta que a aliança seguiu o mesmo destino do tapete. Com a derradeira missão bailando a toda velocidade, os irmãos fizeram das tripas coração na tentativa de acharem a mulher mais linda. Em todas as empreitadas, os vagabundos perderam feio dando com os burros n’água. O mais boçal e pateta, o tolo e pacóvio, com a ajuda do ‘Sapo Gordo’, sem usar de subterfúgios desonestos, galgou as etapas com lisura e discernimento, e o rei (embora os dois irmãos mais sacudidos batessem na tecla do contra), acabaram, por fim, derrotados.
Fiz questão de trazer esse conto dos Irmãos Grimm, para mostrar, ou dito de forma mais abrangente, para ilustrar uma realidade nua e crua que convive com nosso cotidiano, lado a lado. Ao nosso redor, seja na sociedade em que vivemos, seja dentro do nosso próprio lar, lutando contra, pelejando com veemência incontrolada para que não alcancemos nossos objetivos, não faltarão criaturas infames e desgraçadas, aloucadas e zuretas que tentarão nos deixar sem eira nem beira, às rés do chão.
Em meio desses ‘chegados’, podem estar aquele irmão que divide a mesa das refeições, o primo com cara de santinho, o vizinho de porta, ou o amigo que convive no nosso dia a dia. De alguma forma, em brechas de oportunidades, creiam, amigas, todos, sem exceções, ousarão nos passar a perna, nos dar o golpe de misericórdia e nos ver lambendo às raias das sarjetas. Difícil, obviamente impossível, distinguirmos, entre mortos e feridos, quem será o ‘próximo-futuro-Judas’ que nos apunhalará, revivendo a história dos tempos do legendário Brutus.
Lembram dele? – ‘Tu quoque, Brute, fili mi?!’ ou, ‘Até tu, Brutus?!.’ Somos, em verdade, um pouco do espanto de Júlio César. Em oposto, uma partícula grandiosa demais dos irmãos de João Bocó. Sem tirar nem pôr, nos assemelhamos (vez em quando), ao próprio João Bocó em carne e osso. A sociedade pode ser (e, de fato é) representada pelos outros filhos do rei. Um deputado corrupto; um senador vigarista; um presidente escroto; um desembargador feito nas coxas; um ministro metido a deus falsificado ou pirateado..., enfim, qualquer verme de esgoto, pode nos tirar do foco e nos levar para às raias comuns do desespero.
Somos os eternos Bocós. Sofrendo as agruras nas peles dos infindáveis joões-brasil de norte a sul, de leste a oeste, em face de uma chuva grossa de pilantragens e corrupções cada vez mais dinâmica e resistente. Gostamos de levar na testa o carimbo dos joões-ninguém. Acostumamos a ser os joões-bobos, os joões-bostas. A sociedade defeca em nossas fuças e nada fazemos para mudar o quadro. Adoramos ser a ‘privada’ dos prósperos e afortunados. Para nós, não interessa a seriedade, o dinamismo, a visão futurista do João Bocó. Nos resignamos com ordens recebidas e as cumprimos aos pés das letras, sem darmos um pio, sem aquela vontade infinita de colocarmos um ponto final.
Gostamos de sofrer. De sermos pisoteados. Damos glórias em sermos vaquinhas de presépio. Temos uma paixão doentia, quase sexual, para sermos comandados e vivermos para sustentarmos flibusteiros e mantermos no poder os larápios, os trapaceiros, os gatunos, os calhordas e uma lista (à parte) infinita de lombrigas peçonhentas com carinhas de ‘anginhos’ inocentes. Somos uma legião de ‘Joões bocós’ sem um Rei de verdade, que nos dê uma linha de crédito. Nos falta a força de vontade, nos falta a visão magnânima do filho mais novo do rei para sairmos em campo e toparmos, frente a frente, com o ‘Sapo Gordo’ que está bem ali, diante de nós. Infelizmente a nossa imbecilidade galopante, a nossa cegueira irremovível não nos permite vislumbrar um palmo adiante do nariz.
Título e Texto: Carina Bratt,
da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro., 25-6-2023
Carregamos, dentro de nós, uma parte da sementinha de João Bocó — ‘UM’.
Cena urbana
Os velhos temores ficaram no meio do nada
Perguntas e respostas que nos fazem parar e pensar
Um dia, eu vestida de abandono
Um alguém muito especial
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-