Carina Bratt
NUMA REUNIÃO EM FAMÍLIA, um jovem na esteira dos seus poucos anos de espantos e tribulações, perguntou, a seus pais, tios e avós, como eles conseguiram viver num ‘ontem’ sem as comodidades encontradas nos dias de hoje, ou seja, como não sucumbiram num mundo antigo e retrógrado, sem as cores ou as perspectivas, sem as ruas asfaltadas, sem os trens balas, sem os metrôs subterrâneos e outros inventos de tirarem o fôlego, e, por conta de todo esse rebuliço infernal, em dias de elevados sufocos e inquietações, amarguras e turbulências, como explicariam, em detalhes, o que é, ou o que foi verdadeiramente feito de uma palavrinha esquisita chamada carinhosamente de ‘PASSADO?’.
O garoto foi mais longe e se atreveu a indagar como seus consanguíneos se divertiam sem a febre maldita da televisão, sem o Wi-fi, sem a tecnologia que batizaram de ponta? Pior, como sobreviveram sem as comodidades da internet, sem o auxílio dos computadores, sem os drones rasgando o céu, sem os smartphones? Como faziam para se comunicarem sem o Facebook, sem o Twitter, sem o You Tube, sem o WhatsApp, sem o MSG, Instagram e o Netflix?
— ‘Me expliquem -, continuou o guri, ávido e sedento -, para que eu entenda, como venceram barreiras, como chegaram até os meus dias de agora, sem as praças chamativas das alimentações as mais diversificadas? Me mostrem como rolavam os finais de semana sem os brinquedos eletrônicos disfarçados de gatos, cachorros, macacos, elefantes movidos a controles remotos que hoje atrapalham os corredores dos ‘paradisíacos centros de ajuntamentos de pessoas?’. Franzindo o cenho, o pequeno moleque curioso, seguiu adiante: como se vestiam sem as marcas de roupas e sapatos famosos, sem as fabulosas lojas de departamentos que cotidianamente nos consomem e nos sufocam?...’’.
— ‘Mesmo soco na barriga, como vocês viajavam para outras cidades e países além-mares insondáveis sem os modernos aviões cortando o infinito; como se deleitavam não estando ao dispor os ônibus de dois andares e os regalos dos tais carros elétricos? Como engoliam o dia a dia atrelado às futilidades e bobices, como alimentavam as calorias a as fragrâncias do ‘Amor’ para que ele se mantivesse robusto e indestrutível e não sucumbisse ou esfriasse amputado e sem o empolgamento e o entusiasmo nas suas melhores formas de entendimento...?’’
— ‘Em outras palavras: ele, o ‘Amor’, se fazia mavioso e exuberante, afinado e bem-soante? Confesso que hoje tenho ao meu redor e ao alcance das mãos o ‘Amor’, porém (apesar das variedades às mais tresloucadas) não teria, sinceramente, como explicar se sou um ‘Ser Completo’ e ‘consciente’ nesse planeta revolto e sem porteira, desgraçado e imensurável em que vivo. E me questiono, a todo instante: o meu amor é REAL?’’.
Fazendo uso da palavra, o avô na singeleza dos noventa anos, acariciou o rosto do rapaz e respondeu:— ‘Veja, meu querido neto, da mesma forma de sua exposição, eu também lhe deixo aqui algumas interrogações: como a sua geração vive hoje: sem orações, sem dignidade, sem compaixão, sem vergonha, sem fé, sem honra e lealdade, sem respeito e valores. E vou mais longe: sem noção de personalidade, sem um fio ainda que tênue de compromisso, sem o ‘eu’ interior, sem caráter, sem nenhum tipo de ‘tempero’, sem ideias sólidas e duradouras, sem entender o verdadeiro significado do ‘Amor’, sem humanidade, sem observar os preceitos dos mais velhos, sem modéstias e virtudes, sem honra, sem propósitos?’
O senhorzinho tomou fôlego e prosseguiu:— ‘E vou mais longe: você não tem noção do ‘isso eu não sei’, você vegeta sem os pingos da essência, se queda sem o que eu chamaria de ‘força interior’, sem alma, sem identidade, sem visão de amanhã, e o pior, quando muitos de vocês nem sabem se são homens ou mulheres. Uma loucura pior que a da Torre de Babel. Seu velho avô e sua avó, ambos vindos dos longínquos 1930 e 1970, nos sentimos abençoados. Creia, as nossas vidas longevas, são as melhores provas do que agora lhe digo...’
—... ‘No nosso tempo, fazíamos o dever de casa, e, em seguida, saíamos para brincar na calçada. Jogávamos com amigos reais, de carne e osso, não com criaturas virtuais da internet. Criávamos nossos próprios brinquedos e nos deleitávamos com eles. Nossos pais não eram ricos, mas nos davam as fagulhas insubstituíveis do verdadeiro amor. Acredite, meu príncipe, nunca tivemos celulares, Laptops, DVD, Playstation, Xbox, videogames, notebooks, internet, mas, observe e reflita, conquistamos um bocado de ‘Amigos Reais’, todos, sem exceções, afogueados de calor e sentimento. Parentes moravam perto para aproveitarem um tempo mais acentuado em redor da família’’.
— ‘Hoje, poderemos ser vistos em fotos em preto e branco, mas se você olhar com os olhos do fundo da sua alma, tenho convicção, haverá de encontrar lembranças multicoloridas nelas. Somos, meu querido neto, uma geração única, ou dito de forma mais abrangente: uma ‘GERAÇÃO DERRADEIRA, EM EXTINÇÃO’ que, aliás, é bom que se esclareça, ouviu seus pais, e no mesmo procedimento, a ‘PRIMEIRA’ que deu ouvidos a seus rebentos. Somos, meu neto, uma ‘EDIÇÃO LIMITADA, ÚNICA, INSUBSTITUÍVEL...’’.
— ‘Por tudo o que lhe disse, meu pequeno garoto, aproveite, valorize, e aprenda, sobretudo aprenda com o nosso ‘ONTEM’. Ele será o suporte, o esteio, a bússola, o chão, a estrada, o porto seguro, que fará você chegar à idade que temos agora. Ao olhar para os nossos janeiros, um dia, não sei quantos anos à frente, você saberá sopesar se viveu realmente ou se apenas passou por aqui sem deixar nada de bom, de útil ou de aproveitável’’.
EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA: encontrei o texto acima, no ‘Jornal Folha de Barueri’ (via Internet), datado de 12 de junho de 1922, sob o título ‘Essa doeu’. Depois, em pesquisa mais aprofundada, a mesma crônica saltou do Linkedin do ilustre advogado Noé Eduardo, bem ainda me acenou no opúsculo do escritor Waldo Morenno, em seu livro ‘As Maldições da noite’, Editora Shogun Arte, edição 2023, Rio de Janeiro. Recontei a história à minha visão de entendimento, sem, contudo, fugir às caracterizas do foco original, digo do autor, quem quer que ele seja. Lembrando a todos, em repeteco, e acima do exposto, não sou a autora da pérola das ‘Danações’ de hoje, vez que, em todas as pesquisas o “Essa doeu’ aparecer com o mesmo título, contudo, sem direcionar seu verdadeiro criador/autor. Por assim, à semelhança de Fernando Sabino que recriou a ‘Capitu’ de ‘Dom Casmurro’, de Machado de Assis, achei interessante, em vista dos dias atuais em que vivemos e a literatura estar atualizadíssima com o mundo conturbado vivido por todos nós dar-lhe roupagem nova. Trazê-lo a público, na maneira como eu diria a meus filhos e netos, se acaso os tivesse.
Título e Texto: Carina Bratt, da Cidade do Sol Nascente, aqui do outro lado do mundo. 28-5-2023
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