terça-feira, 30 de maio de 2023

[Aparecido rasga o verbo] A prova do crime

Aparecido Raimundo de Souza

GLORINHA ENROSCA PENTELHO
tinha um ciúme danado do Frederico Língua de Gago. Chegava a ser doentio. Para alguns, algo anormal, fora dos limites e dos padrões de comportamento. Para outros, justificável a conduta dela, levando em conta que Frederico Língua de Gago não se fazia flor que pudesse ser cheirada. Por essa razão, volta e meia os dois entravam em atrito. Nessas ocasiões, as coisas acabavam em baixarias, ou seja, nos tapas e arranhões com direito a curativos, pontos e remendos na emergência do posto de saúde local.

Sabedor desse estado inconsequente e desesperador de Glorinha, um amigo do casal, o Confúcio Aloprado (lembrava o Albert Einstein naquela famosa foto com a língua de fora), numa atitude radical e meio bestificada resolveu botar lenha na fogueira só para ver o circo pegar fogo. Pensou em algo simples, que na prática, fizesse estragos a se perderem além horizontes. Como a casa de Frederico Língua de Gago vivia igual à de Mãe Joana, com gente entrando e saindo, a toda hora, passou a mão numa calcinha de sua mulher e partiu para a residência do amigo.

Não foi difícil levar à cabo seu intento cruel. Aconteceu domingo à tarde. Num intervalo em que a campainha tocou e Frederico correu a atender, Confúcio Aloprado ficou por alguns minutos sozinho na sala. Aproveitando a deixa, e reparando que a Glorinha se encarcerava, na cozinha, juntamente com a empregada Lucila, em passar um café novo, enquanto papeava animadamente com duas outras vizinhas, não perdeu tempo. Agiu rápido. Pendurou a dita calcinha no meio das cuecas de Frederico e outras peças da mulher dele que secavam num minúsculo varal contiguo à lavanderia.

Depois desse ato impensado e, diga-se de passagem, “mau” feito, amargou umas duas horas antes de se despedir do amigo e do outro rapaz que chegara e, logicamente, da esposa. Queria ver porrada e sangue. Contudo, naquele final de tarde, a coisa despercebeu à companheira, e, ele, não teve como se regozijar, de camarote, vendo a desgraça do outro tomar corpo e forma. Pelo menos, dia seguinte, se imbuiria de muita elasticidade emocional para aguentar os desabafos e choramingões do desditoso. Frederico Língua de Gago, além de pagar um baita mico, ficaria com o focinho em pandarecos de tantas unhadas e dentadas.

A Glorinha, nesse ponto, quando se enfurecia, saia do chão. Chutava a barraca com pau e tudo. De contrapeso, rodava a baiana e não havia quem ousasse meter o bedelho. Realmente, nem bem a segunda feira se fez às primeiras horas, o telefone disparou a tocar:
— Alôa...?
— Pois não?
— Quem fala?
— Confúcio Aloprado às suas ordens.
— Seu Confúcio, bom dia. Desculpe pelo horário. Ainda não são oito horas. Aqui é o Bebéu, seu vizinho do final da rua.

Confúcio Aloprado se fez de inocente, claro:
— Bom dia, meu amigo. Em que posso ajudá-lo?
— Como o senhor sabe, somos confinantes quase de porta, tanto do senhor, como do Frederico Língua de Gago. Estou ligando, porque ele e dona Glorinha, nesta madrugada, por volta das três horas, tiveram um arranca rabo. A coisa foi feia. Partiram para as vias de fatos e acabaram no pronto socorro. O Frederico me pediu para ligar para o senhor. Quer que o prezado vá ao hospital buscá-lo. Está com caneta? Anote o endereço?

Confúcio Aloprado anotou a rua, o número e o hospital. Não era o PA do bairro. Agradeceu e desligou. Bingo! Acertara na mosca. Glorinha deveria ter cuspido todos os marimbondos disponíveis. Queria ver os estragos do Frederico Língua de Gago. Pegou as chaves do carro e saiu. Na ida, deixou a patroa no supermercado onde ela trabalhava. No hospital, a primeira pessoa que avistou sentada no banco da recepção. A Glorinha. A jovem lembrava um pouco Fernanda, a noiva abandonada e vingativa vivida pela atriz Dina Sfat na novela “Selva de Pedra”. Correu até ela:
— O que houve, minha boa amiga? Algum caminhão...?!
— Não exatamente, seu Confúcio Aloprado. Foi o Frede mesmo... em carne e osso...
— Como?
— O vagabundo anda levando piranha lá em casa. Peguei uma... lingerie no meu varal. Pois é... acredite se quiser...
—... E daí?
— Como um trator varejei pra cima dele pedindo explicações. “Tu vais engolir esta merda – berrei. E cai com tudo para o abraço”.

— E ele?
— Revidou. Como é forte, me desceu a lenha. Em consequência, as escoriações pelo corpo todo e o ombro quebrado. Vou precisar engessar. No mais, disse que sou louca e que vai me internar. Acha que pirei de vez, pois não conheço nem as minhas roupas de baixo.
Nesse momento surgiu de um corredor comprido, vindo dos cafundós de uma das enfermarias, o Frederico Língua de Gago. Um molambo. Trazia um braço preso numa tipoia, a tez paralisada por uma sequência esquisita de gazes e esparadrapos. Os olhos se faziam vermelhos feito tomates podres, a boca inchada com uma dezena de pontos cirúrgicos.

Confúcio Aloprado pediu licença à Lurdinha e voou em harmonia dele, o acolhendo num amplexo fraternal:
— Dro... dro... ga... cara. De... va... gar...
— Vim assim que pude. O Bebéu me ligou...
— Be... Be... Bele... leléu... é nos... nos... so... vi... zin... ho. Boa... al... al...ma...
— Que deu em vocês?
— Nem... nem te... te... conto. Apa... apa... rere... receu no va... no vava... varal... lá... de... ca... casa... um fi... fifio... den... dental... e... a... a... Glo... Glo... rin... rinha... dis... se que... dis... se que é de uuu... uma... ama... aman... te... que... que... re... resi... de... du... as... duas ruas... abai... abaixo de on... de... onde mo... ra... mos.

— Você deveria tomar mais cuidado, Frederico. Onde se viu levar essas mundanas para dentro de seu lar? Lar é uma coisa sagrada!
— Ma... ma... mais eu não le... não levei, ca... cara. Isso só... só po... pode ser co... coisa do di... didi... diabo.
— Se não foi você, quem mais penduraria uma coisa dessas em seu varal?
— Se... sei... não, Confú... fufu... cio... mas acho... acho que... que... foi... saca... saca... nagem da Su... Suzi...
— E quem é essa Suzi?
— Uma ami... amiga de Glo... Glo... rin... há. A filha das... pro... fun... dezas... está doi... doi... da para me... para me ver... nana... hori... hori... zonzon... tal...

O papo transcorria normalmente. Por momentos, os amigos se olvidaram que dialogavam no acolhimento interior de um hospital. Sequer lhes veio à memória, que a Glorinha se fazia poucos passos, sentada. Num dado momento, agastada de esperar, se levantou cambaleante e veio, de mansinho para o lado da dupla. Sem querer, ao acaso, escutou um fio da conversa. Chegou em hora imprópria, a sanha de capturar o marido se abrindo feito paraquedas. Confúcio Aloprado, como sempre, dando uma de desentendido, levou na gozação: 
— E você não quis balançar os esqueletos, não é mesmo? 

Frederico Língua de Gago, para não ficar por baixo, liberou a língua: 
— Se... seu bur... ro. Co... coco... mi... a fruta duas... duas vezes... e a des... des... ca... rada... ga... ga... mou... no pa... pai aqui. Quer é... re... repe... repe... tir a do... do... dose... 
— E como urdiram para a Glorinha não surpreender os pombinhos de calças curtas? 
— A nos... a nossa... em... pre... pre... gaga... da... Lu... Lulu... ci... cila... me... me... deu co... coco... ber... tu... ra. E acon... tete... cia de... de... pois que a min... haha... espo... espo... sa... sasa... saia... pa... papa... para... ra... o tra... ba... ba... lho... 

Confúcio Aloprado deu uma de desentendido. Observou, rindo: 
— Queria eu ter uma criada dessas lá em casa. Você é um sortudo! 
— Vo... vovo... vou... lhe... com... contar... um se... se... gre... gredo. Tam... bém te... tenho um ca... ca... so... com... a... Lu... Lulu... ci... la... 
O mundo veio à baixo. Glorinha, indiferente à carroceria corrida, lançou no ar o seu brado de guerra e se projetou em ataque. A pancadaria recomeçou. Os ânimos se acalmaram na delegacia de policia, cada um trancafiado numa cela. 

Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Cidade do Sol Nascente. Ou, do outro lado do mundo. 30-5-2023 

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