domingo, 21 de maio de 2023

[As danações de Carina] Um dia, eu vestida de abandono

Carina Bratt 

HAVIA UM SOL mágico e feiticeiro, travesso e finório, que se escondia em meus olhos e refletia a minha alma em flor fazendo com que todas as conexões de minhas artérias desaguassem numa cachoeira de felicidade incalculável e ludicamente plena. De contrapeso, uma cantiga que lembrava momentos de minha infância cheia de letrinhas de sopa e uma ternura ensaiando nascer ao menor toque. Nessa hora eu me via vestida numa menina com todas as idades, mas sem a idade correndo na adulta que fluía escorregadia dentro de mim. 

Não posso me esquecer da ponte de madeira em arco sobre um riacho de águas cristalinas, bem ainda de uma família em festa constante, todos acomodados ao redor de uma mesa enorme e farta, todavia, sem bolo cantando parabéns... e lá longe, lá bem distante, do outro lado dessa ponte, morava uma casinha pobre com varanda de alvenaria, janelas brancas com carrancas e portas de alumínio cercadas de flores silvestres, flores impecáveis  que sorriam um sorriso eterno, sem rugas e sem manchas,  para o azul de um firmamento imenso que se alongava para além do horizonte intransponível. 

Não posso deixar de falar num cachorro de estatura pequena, desses vira-latas magros, sem nome, ou certidão de nascimento, sem um pedaço do rabo, que dormia largado ao pé de uma jaqueira enorme, enquanto bem mais além, lá para as bandas do caminho do trem que cortava o agreste da vegetação, se ouvia a voz cálida de um vento terno que dançava ao som das larguras que se perdiam onde as vistas não fixavam alcançar. Tudo isso me vem à memória, assim do nada, como se ‘meu eu interior’ fosse levado por duendes encantados fugidos de algum livro dos Irmãos Grimm.  

Lembro, outrossim, de uma bisbilhotice faceira que rondava o coração dos passarinhos. Pode parecer mentira, mas ainda agora, tantos janeiros passados, ouço aquela música de melodia simplória que inebriava os ouvidos seguida de um monjolo irrequieto que socava o milho sem deixar que uma dezena de galinhas solitárias fizesse a festa com grãos vadios insistindo em não cumprirem a missão de virarem um amontoado de pó. Já não quero falar de um visual torto da natureza gigante e um mormaço que queimava inclemente enquanto uma agulha mágica costurava as horas em suspiros confidentes. 

Meu Deus! Tinha mais, muito mais: recordo um silêncio pesado que cuidava da quietude do lugar, um silêncio que se fazia vazio e oco da presença humana e também uma solidão descalça de sapatos caros que se punha sentada na rede comprida e desbotada, presa na varanda da casa, e, de vez em quando, inventava um vai e vem irrequieto e buliçoso, excitado e frenético, só para fazer ranger as dobradiças que a tolhia de sair correndo para uma fuga sem rumo certo para se chegar obviamente à lugar nenhum. 

Igualmente me vem à memória um não sei o que barulhento de cheiro forte, um esfregar de pés sobre o assoalho rústico, uma saudade amordaçada e devoluta, que enchia a alma, e, igualmente, deixava fluir uma reflexão inconsequente, dando vazão ao nada-tudo cada vez mais denso e complexo. E euzinha ali vestida de abandono, descalça da sorte, o sol à pino refletido nas pestanas, não permitia que a cabeça se deslocasse em pétalas, nem que a intimidade de meus medos mais tenebrosos aflorasse para o gradual. 

Eu, ali, firme, ereta, a cabeça dando voltas sobre pensamentos destituídos de formas concretas, sem ninguém no meio da ponte em arco, vestida de poeira, sem maquiagem, desprovida das coisas da cidade grande, procurava no acaso do nada, alguma coisa que não me tolhesse a visão da ponte em arco, tampouco da casinha branca. Não queria perder o cachorro deitado ao pé da jaqueira nem deixar que fugisse da minha frente a tristeza cansada das janelas brancas, nem deixar que meu sonho de chegar até lá, e de sentar um pouco na rede para descansar caíssem, de repente, sobre as águas da ponte e se perdessem aquém do alcance das minhas mãos vazias de tudo, inclusive da força pujante da vida que Deus me deu de presente sem que eu fizesse absolutamente um tantinho assim para merecer estar aqui agora. 

Título e Texto: Carina Bratt, de Brasília, Distrito Federal e Cidade do Sol Nascente. 21-5-2023

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