sexta-feira, 19 de maio de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Pontos e sinais

Aparecido Raimundo de Souza

QUANDO OLHEI para a moça que acabara de subir e cruzar a catraca dentro do coletivo e que depois de pagar a passagem viera se sentar frente a mim, não pude deixar de olhar para seu corpo escultural, suas pernas longas e bem feitas metidas num vestidinho azul extremamente curto que deixava entrever tudo, exceto o que havia debaixo dele, entre o espaço das coxas e a barriguinha. Com essa visão interrompida do paraíso, imaginei, em pensamento, aquele pedaço de mau caminho totalmente despido de um leve pedacinho de pano que resguardava o mais delicioso de todo o conjunto: a sua nudez.

Desde que a bela se acomodara, notei que colocara a mão esquerda no rosto, tampando o parcialmente. Esse gesto ligeiro, meio que opressivo, me chamou mais ainda a atenção, e, então, eu me dei conta do real motivo daquilo que para ela deveria permanecer ocultado. Longe das vistas de todos, escondido mesmo, como algo que não carecesse estar ao exposto de terceiros. O desencanto da sua desdita: ele se constituía num ponto medonho que ela não queria mostrar à curiosidade de terceiros, possivelmente por vergonha. Esse lado da sua mágoa se afixava na sua abertura oral. Era totalmente desconexa e torta, o que deformava o encanto da sua magia e colocava um tremor mórbido em seus lábios. Os olhos de um azul muito claro pareciam extremamente tristes. O aleijo, talvez de nascença, ou quem sabe causado por alguma enfermidade mal curada, deixara à sanha do desvairo público uma consternada sequela.

Um desfecho que ela, por ser jovem, não conseguia engolir. E isso, visivelmente gritava alto e em som manifesto. Constrangia, sobremaneira, aquela boneca impecavelmente linda e inimitável. Obcecada pela vergonha, horrorizada pelo fato de não se sentir à vontade, deduzi que ela não se ponderava feliz, embora o albor da sua juventude dissesse exatamente o contrário. O tempo todo da viagem, quase duas horas e meia, ela seguiu de rosto tapado. Vez em quando trocava de mão, sempre escondendo o pejo da cicatriz malvada que lhe tirava o viço e a diminuía na dor e na agonia, o que evidentemente a levava a se sentir feia ou talvez, por essa razão, se via excluída das pessoas ao seu redor.  Que desdita!

Olhei para ela com ternura. Com um carinho especial. Tão linda e perfeita, todavia atormentada, no âmago da sua insatisfação, por uma deformidade inverossímil. Apesar disso, seja qual for o nosso problema, não devemos sentir vergonha de certos desconfortos, por mais feios e sinistros que possam parecer. Todos nós temos pequenos mutilos. Alguns desses amputos, visíveis. Outros nem tanto. Entretanto, quero crer, e, em verdade abono piamente o que agora penso e escrevo. Não importa onde o nosso ponto fraco, o nosso aleijo, ou a nossa flagelação esteja manifesta, ou, via outra, onde a nossa desgraça se faça estropiada.

O fato de sabermos que alguma anormalidade, por menor que seja, nos diminui e tira o nosso viço, bem ainda, atormenta a nossa alma, apavora o nosso espírito e afasta a nossa sensibilidade do sermos felizes (e entenda aqui felicidade) na sua melhor forma de expressão, não devemos nos preocupar. Mesmo norte, jamais nos deixarmos ser levados pela leviandade de quem nos julga e nos coloca numa visão dúbia e desconfigurada do que entendemos por dentro da “normalidade”. Por conta de pequenas ou grandes cissuras, por levarmos em conta opiniões infames e ignóbeis, ficamos divorciados de nós mesmos, e, sobretudo, deixamos de viver a plenitude casta e honrável da verdadeira razão de sermos completamente realizados.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Brasília Distrito Federal.  19-5-2023

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