sexta-feira, 12 de maio de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Acidente de percurso

Aparecido Raimundo de Souza

DONA DORA MAIS SEU PEDRO
estavam sentados, de mãos dadas, corpos colados um no outro, tomando chá com biscoitos no gramado junto ao enorme muro que circundava o jardim da casa de veraneio que uma das filhas deles havia adquirido recentemente. Era manhã de domingo e o genro, querendo agradar os sogros, pulou da cama cedo e saiu com a esposa e os filhos pequenos para providenciarem a carne e o carvão para queimarem um churrasquinho depois do almoço. Como seu Pedro era bom de copo, apesar dos noventa e dois anos, o rapaz resolveu reabastecer a geladeira e o freezer, colocando umas latinhas a mais para gelar enquanto faziam o supermercado que ficava situado a duas quadras da residência.

Seu Pedro, intransigente, como sempre, não ficava quieto nem dava sossego um segundo sequer. Percebendo que não havia ninguém por perto, só a empregada que cuidava dos afazeres domésticos, virou para sua companheira de tantos anos de convivência, cheio das más intenções, e, com a maior cara de safado, partiu para a luta:
— Estou aqui pensando numa coisa, minha princesa.
— Posso saber exatamente em que está pensando?
— Claro, minha querida. Estou lembrando do nosso tempo.
Dona Dora sorriu um sorriso largo e matreiro. Em seguida colocou uma das mãos na cabeça branca de seu esposo e o atiçou a dar continuidade aos devaneios:
— Você não toma mesmo jeito, não é meu guri?

O velhote se empolgou com essas palavras:
— Com você por perto, minha flor, eu não consigo me controlar. Apesar de toda a idade que me pesa nos costados, o fogo ainda queima aqui dentro, digo, aqui na cabecinha do meu piazinho levado da breca.
Dona Dora também não ficava atrás. Gostava de alvoroçar o marido, e, sempre que dava uma brecha, partia, de bom grado, para uma sacanagenzinha. Bastava o velho animar, não perdia tempo. Entrava na dele e deixava rolar. Por essa razão, mais que depressa levantou a saia comprida que chegava quase a se arrastar na grama verdinha que enfeitava o lugar dando um toque especial à paisagem. Seu Pedro, sem perda de tempo, e diante daquele gesto encorajador da mulher, não esperou uma segunda ordem.

Enfiou, correndo, a cabeça no meio das pernas dela:
— Nossa, minha velha, wonderful! Não acredito, no que estou vendo. Você está... está de novo sem calcinha?
— Por causa do calor meu velho. Culpa dele. Sabe que fico toda assada. De mais a mais, por qual motivo todo esse espanto? Acaso esqueceu que sempre fui alérgica?
— Não, minha flor, não me esqueci. Como poderia? E você, lembra, ainda, da nossa primeira vez?
— E como lembro!...
— Você estava pecaminosa acondicionada num vestidinho de chita e um rabo de cavalo. Tinha uma fita de pano azul, suja de fazer dó. Apesar disso, aquela fita não tirou o seu brilho de rainha.

Nessa altura foi a vez da velhinha se empolgar:
— É. Eu lembro... e você pegou no meu rabo... no meu rabo de cavalo e me abraçou longamente... em seguida, seu safadinho, com seu atrevimento arrojado me encostou com força contra o muro. Também estava sem nada por baixo...
— Verdade, minha princesa, estava mesmo. Gostou daquele dia?
— Não. Já falei um milhão de vezes. Você machucou a minha bunda...
— Eu? Como? Nem toquei...
— Não se faça de desentendido. Esqueceu que me encurralou contra a parede? Lembra da merda da parede?
— Como se fosse hoje, minha princesa, como se fosse hoje. Seu pai havia acabado de rebocar a construção de fora a fora.

Seu Pedro encarou a esposa, sorriu matreiro e completou:
— Era uma parede sisuda de tijolos muito alta, - igual a esta aqui atrás de nós - com cacos de vidro para evitar a entrada de ladrões na casa. Sua mãe, coitada, tinha um medo que se pelava de algum estranho aparecer de repente e...
— Pois é: e você não perdeu tempo. Encostou, sem dó nem piedade meu traseiro naquele cimento fresco, naqueles tijolos gelados e mandou bala. Fiquei quase a semana inteira toda arranhada e chamuscada. Tirando essa parte ruim, o resto, apesar de toda a aspereza que me deixou andando de lado, até que foi bom...
— Sabe de uma coisa? Você estava apetitosa, naquela tarde. Apetitosa e saliente...
— Você também, insaciável e apimentado. O troço duro feito pau de tarado...

O velho Pedro, ao ouvir tais argumentos, deu imediato início em uma série de bolinações. Passados alguns minutos a anciã reclamou:
— Amor tira os óculos. Eles estão machucando a minha passarinha...
— Desculpe, princesa. Não foi por querer. Vou me livrar deles. Você segura para mim, por favor?
— Com todo prazer...
Seu Pedro, sem mais delongas, entregou os óculos à esposa e voltou imediatamente ao serviço. Desta vez, partiu para cima com mais afoiteza e sofreguidão. Dona Dora, entretanto, voltou a ralhar e a repreender o marido, não com raiva ou zanga, mas cheia de carinho e delicadeza:

— Querido...
— O que é agora, minha princesa?
— Põe os óculos...
Sem afastar a cabeça do meio das pernas dela, seu Pedro se mostrou deveras espantado:
— Diabos, os óculos?! Vamos ficar nesse tira e “destira” até quando?
— Não importa. Faça o que mando. Toma. Ponha de novo, meu velho...
—...Você não falou agorinha mesmo que eles estavam cutucando a... a caixinha dos segredos?

O tom de voz dela trouxe mais dramaticidade a situação:
— Falei, meu querido. Mas esqueça o que eu disse. Ajeite os óculos, pelo amor de Deus. Faça isso rápido. Aproveita o clima... depressa, estou vendo Jesus passar numa nuvenzinha encantada logo ali adiante... vai, vai...
— Mas princesa...
— Ponha os óculos, moço. Você ficou maluco? Enfia a droga dos óculos na fuça, e, pelo amor de Deus, pare de chupar a porra da grama!

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Parque Ibirapuera, São Paulo. 12-5-2023

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