Paulo Polzonoff Jr.
No romance “Os Invernos da
Ilha”, o escritor e amigo Rodrigo Duarte Garcia comete uma ousadia
semi-imperdoável na modorrenta literatura brasileira. Abusando da imaginação,
ele descreve um duelo de espadas entre dois personagens contemporâneos.
“Seguiremos à risca as regras tradicionais do Código de Duelos, de
1777”, explica um deles. “A não ser que o senhor prefira utilizar o Flos
Duellatorum...”, emenda.
Ao ler isso, eu ri. E, talvez
porque já tivesse tomado sol e gim-tônica demais, me lembrei dos grandes
embates intelectuais da imprensa de um tempo que não vivi. E foi assim que, em
meio às piscinas naturais de Bora Bora, tive a ideia para esta seção na qual
refuto e/ou comento trecho por trecho algum texto que tenha chamado a minha
atenção.
Intitulado “Plataformas atacam democracia e PL das Fake News, mais que nunca, deve ser votado”, o texto de estreia de Ponto & Contraponto foi publicado no jornal O Globo e é de autoria da jornalista Miriam Leitão [foto], sobre a qual não farei nenhuma consideração pessoal. Afinal, o objetivo aqui é refutar e até ridicularizar ideias, e jamais pessoas.
PONTO: Os ataques ao PL
2630 durante o feriado e fim de semana colocaram do mesmo lado bolsonaristas e
as plataformas, que entraram em uma guerra suja.
CONTRAPONTO: A autora já parte
da premissa vitimista de que qualquer crítica ao PL 2630, carinhosamente
intitulado PL da Censura, é um ataque. Não é. E, mesmo que fosse, a fim de
sobreviver as ideias deveriam ser capazes de resistir a ataques argumentativos.
Afinal, democracia pressupõe que se chegue a um consenso depois de muito
debate. Depois de muito duelo.
Na mesma frase, o que se vê
são as bases frágeis do pensamento supostamente democrático da autora, que não
concebe um mundo onde as plataformas (ela está se referindo às grandes empresas
de tecnologia, como o Google, Meta e Twitter) e os “bolsonaristas” não podem,
em hipótese alguma, se aliar em torno de uma causa justa e nobre: a da
liberdade de expressão.
Já a “guerra suja” é apenas um dos vários clichês que pontuam o texto panfletário.
PONTO: Deixaram claro os
riscos aos quais a democracia está exposta e a necessidade de que o Brasil vote
com urgência uma lei para a regulação das plataformas digitais.
CONTRAPONTO: E lá vêm eles
novamente com a história de que a democracia está exposta a riscos. O
argumento, porém, é tão fraco quanto o estilo que em muito lembra as redações
escolares cuja conclusão sempre começava com “precisamos nos conscientizar de
quê”. A autoria encerra o primeiro parágrafo optando por reproduzir a
novilíngua petista, para a qual “censura” é “regulação das plataformas
digitais”.
PONTO: O PL das Fake News
esteve sob intensas investidas políticas e ideológicas da extrema direita nos
últimos dias.
CONTRAPONTO: A regra é clara:
escreveu “extrema direita” é porque entende que só a extrema esquerda tem
direito a opinar. Nada poderia ser menos democrático do que isso. E o que
seriam “investidas políticas e ideológicas”? Por que essa diferenciação? Toda
investida política é ideológica, e vice-versa. Mais uma vez, a autora usa a
imagem de um confronto para retratar algo que, numa democracia de verdade, com
"d" maiúsculo e todo trabalhado no gótico, deveria ser até exaltado:
o debate de ideias.
PONTO: Mas a pior delas foi
a das big techs (sic), em especial o Google, em um movimento que
inclusive coloca em risco a votação do PL nesta terça.
CONTRAPONTO: Não sei se o projeto
de lei que institucionaliza a censura foi ou não votado, aprovado ou rejeitado*. Mas é curioso notar como, agora que lhe convém,
a esquerda reconhece o poder de interferência das empresas de tecnologia. A
ideia de que a votação está em risco também é digna de nota, porque se trata
evidentemente de uma ressalva para o caso de o projeto ser derrotado no
plenário. Se isso tiver acontecido, ou se o projeto nem for votado, você já
sabe: a culpa é do Google.
*
Atualização: o projeto foi tirado da pauta.
PONTO: O pior não é a
campanha que fazem contra o PL, mas o fato de que distorcem o debate usando o
poder que têm sobre disseminação de conteúdo.
CONTRAPONTO: A frase é de um
cinismo muito comum entre a esquerda semiletrada. Lendo com atenção, tem-se a impressão
de que a autora está concedendo à oposição o direito de se posicionar contra o
PL. Mas o que vem depois da vírgula denuncia a intenção real disso que só a
muito custo se pode chamar de ideia. Para os defensores da censura
institucionalizada, qualquer argumento contrário à ideia totalitária é
“distorção do debate”.
PONTO: As plataformas
entraram pesado nesse jogo. Fizeram anúncios em rádio, no Spotify e se
posicionaram até no buscador principal do Google, fazendo a afirmação mentirosa
de que o PL tornará mais difícil separar mentira da verdade.
CONTRAPONTO: Confesso que a
primeira frase do parágrafo me fez voltar às aulas de redação da sétima série.
No mais, por que apenas socialistas/progressistas é que podem defender com
afinco (“entrar pesado no jogo”) seus valores? Novamente a autora deixa claro
que tem uma visão muito particular de democracia. Uma visão que evoca a
sabedoria milloriana, segundo a qual “democracia é quando eu mando em
você; ditadura é quando você manda em mim”.
Em seguida, a autora denuncia
o que ela acredita ser um crime gravíssimo: as empresas de tecnologia fizeram
anúncios defendendo seu posicionamento contra a censura petista. Tudo isso para
encerrar com uma oração sem pé nem cabeça, na qual ela acusa o Google de estar
mentindo ao dizer o óbvio: distinguir a verdade da mentira sempre foi difícil.
E um projeto de lei que dificulta a livre circulação tanto de ideias
verdadeiras quanto mentirosas só dificulta ainda mais essa tarefa ancestral.
PONTO: Foram além disso.
Bloquearam alguns perfis e reduziram a circulação de qualquer conteúdo que seja
a favor do PL usando algorítmos, ao mesmo tempo em que promoveram conteúdos
contrários.
CONTRAPONTO: Aqui vale notar a
estratégia meio infantil de ocultar o sujeito antes de fazer acusações que se
provaram, com todo o respeito, levianas. Miriam Leitão não tem qualquer prova
de que as empresas de tecnologia bloquearam perfis ou reduziram a circulação de
conteúdos favoráveis à censura. É pura especulação que me obriga a perguntar: e
se fosse o contrário?
PONTO: A especialista em
comunicação digital Nina Santos, representante da Sala de Articulação contra a
Desinformação, aponta que isso é censura.
CONTRAPONTO: Nina Santos?
Prazer, Paulo.
Nesse trecho fica clara a
mentalidade academicista e burocrata da autora, que acredita que o título de
“especialista” confere autoridade a qualquer pessoa, a ponto de ela julgar
necessário mencionar a Nina (olha a intimidade!) no texto. No mais, Sala de
Articulação contra a Desinformação cheira a eufemismo para Cantinho do Censor
Esquerdista.
PONTO: É uma plataforma
dizendo o que é ou não importante na discussão de uma política pública.
CONTRAPONTO: Não. É uma
plataforma se posicionando diante de um projeto que prejudicará os negócios
dela. E aqui é necessário fazer uma ressalva importante. Não é o “amor à
liberdade” o que move as empresas de tecnologia. Isso ficou bastante claro
durante as eleições. O que move as empresas é o temor de perder um mercado de
200 milhões de pessoas.
PONTO: Estão tomando atitudes
antidemocráticas, e não podem fazer isso. As plataformas entraram na guerra de
maneira suja, e querem forçar sua opinião. Isso é muito sério.
CONTRAPONTO: “Tomando atitudes
antidemocráticas”. Mais uma vez a autora recorre à linguagem vazia e exaltada
típica dos panfletos. Talvez ela conte com a passividade algo bovina de seus
leitores, não sei. Adiante, ela repete o adjetivo que parece ter criado raízes
em sua imaginação árida. A guerra é, novamente, suja. “Querem forçar sua
opinião” é outra afirmação cuja pobreza estética fere os olhos de qualquer
leitor minimamente exigente.
Tudo para concluir o texto com
o brilhantismo estéril de uma frase comumente entreouvida em meio às discussões
nos campeonatos de dominó do Passeio Público: “Isso é muito sério”.
Título e Texto: Paulo
Polzonoff Jr., Gazeta
do Povo, 3-5-2023, 6h56
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não aceitamos/não publicamos comentários anônimos.
Se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-