terça-feira, 16 de maio de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Doidão

Aparecido Raimundo de Souza

BUNDÊNCIO DE QUEIRÓZ E REGO
, aos quarenta e cinco anos, havia aprontado tudo o que tinha direito e mais um bocadinho. Depois que conheceu a jovem Euzenira de Godoy, de vinte e nove e lhe pôs no rego –, ou melhor, lhe acrescentou ao nome, o Rego, patronímico tradicional de seu velho pai, o respeitado e querido Inácio, ao casar com a bela e esfuziante donzela de Parada de Lucas, na Igreja de Santa Luzia, numa conturbada cerimônia que, por pouco, não acabou com todo mundo na delegacia, melhorou um pouco. Um pouco, todavia, não é cem por cento. O fato é que deixou de trazer à baila, como antes fazia, certas travessuras e safadezas.

As suas façanhas e traquinagens se perderam num rosário de feitos que até Deus, se parasse para pensar, duvidaria. Tudo começou quando completou o oitavo aniversário. Na sua festa, hora antes de chegarem os convivas para cantarem os parabéns, o miúdo trocou todo o líquido das garrafas de refrigerantes de Coca-Cola por água misturada à borra de café e urina, isso porque o mijo, segundo seus conhecimentos, “mais se assemelhava às coloridades (1) do guaraná”. Daí para frente, não parou mais. Do simples gesto de roubar as chaves dos carros das visitas e dos próprios parentes que apareciam nos domingos, em casa de seus pais, em Laranjeiras, passou a manchar o traseiro das madames que faziam parte do imenso círculo (que a cada final de semana aumentava), pintando com um pincel emporcalhado em tinta vermelha, os assentos das cadeiras onde as dondocas iriam repousar as suas respectivas bundas. 

Não contente, anos depois, partiu para missões mais sofisticadas, do tipo: enguiçar os elevadores do prédio onde passou a morar, em Copacabana, na Avenida Atlântica, depois que seus pais se mudaram para a casa de Laranjeiras, a atear fogo nas lixeiras do condomínio, furtar gasolina na garagem do edifício e furar os pneus dos carros ali estacionados, mesmo com todas as câmeras de segurança do circuito interno ligadas vinte e quatro horas. Uma vez mandou uma velhinha direta para o hospital – e quase a pobrezinha bateu com as doze. A coitada estava no velório do neto, chorando, quando, de repente, um corpo se levantou do caixão, no meio da capela, e acenou para os presentes que estavam ao redor. 

A debandada foi geral. Gente correndo às cegas, se atropelando pelas portas e corredores, outras tantas pulando janelas, crianças gritando, homens nervosos, mulheres passando mal, senhoras em estado de choque, com destaque para duas bichas enrustidas que, do nada, passaram a desmunhecar, e, além de quebrarem as munhecas, vomitaram por cima do esquife, das cadeiras, e das dezenas de coroas de flores que amigos enviaram ao defunto. Cenas hilárias e patéticas dignas de serem levadas às telas dos cinemas. Quem estava por lá, certamente jamais se esquecerá desses acontecimentos. 

Nesses aprontamentos de Bundêncio, sobraram algumas memórias que ele, ainda hoje, adora contar para os mais curiosos:
— Escondi certa vez, as batinas do padre Tadeu e, no lugar das hóstias, sagradas, coloquei um pacote de balas de açúcar com mel. Isso gerou um verdadeiro caos. O padre Tadeu, preso à velhos preconceitos e tabus da igreja, se negou a celebrar a santa missa sem os paramentos costumeiros. A comunidade se reuniu e novas batinas foram confeccionadas e entregues a ele. Com a história do mel no cálice das hóstias, juntou formiga na sacristia até dizer chega.

Por conta desses acontecimentos, o vigário queria ver o diabo diante dos olhos. O seu terror aumentava quando avistava, no meio dos fiéis, o filho de seu Inácio e de dona Filomena olhando para ele, como um demônio (ainda que grudado fortemente nas mãos dos responsáveis). O santo homem em seu íntimo, sentia uma espécie de arrepio eletrizante que lhe corria desordenadamente da ponta dos pés à raiz dos cabelos. Dizem os antigos, que “quem faz um cesto, faz um cento”. A última de Bundêncio aconteceu no dia primeiro de maio próximo passado. Chegou a ser manchete no jornal “O Dia”. Deu até na televisão, antes do “Jornal Nacional”.

Ele foi ao shopping com a esposa, a Euzenira e o filho deles, de colo, de três semanas, uma cunhada de quinze anos e a sogra. Andaram, pararam aqui e ali, visitaram várias lojas, viram vitrines, compraram, enfim, deu até tempo de curtir um cineminha. Na saída da sala de projeção, resolveram chegar até a praça de alimentação, onde fizeram um lanche. Na hora de voltarem para casa, antes de descerem as escadas rolantes, Bundêncio se aproximou do parapeito e olhou para baixo. O povo parecia um imenso formigueiro. Pessoas iam e vinham com sacolas nas mãos, casais de namorados trocavam carícias e beijos apaixonados, crianças corriam e gritavam.

Bundêncio de Queiróz não pensou duas vezes. Abriu a braguilha da bermuda e botou para fora da cueca um pinto magro e seco. Não contente, danou a gritar para o público presente:
— Atenção, senhoritas. Acabou de chegar o garanhão mais fofo do pedaço. Façam fila. Tem mandioca para todo mundo. Quem é a primeira?
Ninguém sabe dizer ao certo quem foi a primeira. Aliás, a bem da verdade, não houve uma primeira. Bundêncio, entretanto, com o ereto de fora, danou a correr. Atrás dele, uma dúzia de seguranças rigorosamente vestidos em impecáveis ternos pretos e sapatos sociais, cada um com um radinho de comunicação nas mãos. Os sujeitos falavam, gesticulavam, esgoelavam ordens, apontavam para um lado e outro. Todavia, nada de conseguirem deter o engraçadinho.

A confusão pegou geral. Por seu turno, Bundêncio, pivô de toda aquela barafunda inusitada, paralisou o local e conseguiu deter o focar todas as atenções para a sua pessoa. De um momento para outro, olhares estatelados em rostos pasmos e estupefatos se fizeram cravados em sua fuça de maluco. Para ele, propriamente dito, ninguém ajuizava um espiar mais delongado. A turba de curiosos mirava, à espasmos inconcebíveis, o bilau que o mentecapto insistia em carregar esticado no meio dos dedos. Rindo a mais não poder, a criatura marchava a toda pelos quadrângulos do suntuoso edifício. Subia e descia as escadas rolantes e as não rolantes, ora pulava os corrimões; ora dava saltos espetaculares e a rapaziada; na cola; tentava botar um basta na tosca e ridícula apresentação. Estava difícil, verdade seja dita, contudo...

A polícia militar se fez presente. Dois soldados, assim que chegaram esticaram uma fita amarela, como se fizessem uma espécie de isolamento da área. O que comandava a tropa, berrou em alto e bom som:
— Vamos por ali.
— Não, tenente, melhor por aqui. Ele pode pular...
— Verdade. Providencie uma rede. Cabo Tobias, afaste as crianças. Protejam as senhoras. Peça que desliguem as escadas rolantes.
Um outro da farda se fez ouvir em meio à balburdia:
— Ninguém sobe. Ninguém desce. “Menas” ainda, ninguém pula...

Apesar de todos os cuidados tomados e da parafernália armada, não conseguiram chegar ao evento de botarem as algemas no desequilibrado. Ele conseguiu burlar os seguranças e a própria operação policial posta em seu rastro. Bundêncio conseguiu mais: a certo momento, ganhou uma ruazinha lateral e sumiu no pedaço. A coitada da Euzenira, o filhinho de três semanas, a irmã de quinze anos, e a mãe (sogra dele), temerosas de serem reconhecidas e levadas à delegacia, trataram, igualmente, de saírem de cena à francesa (2). Foram para o estacionamento, cabisbaixas, vexadas, as faces retraídas, os globos oculares esbugalhados. À medo puro, entraram num carro de aluguel. Sequer chegaram a espiar à retaguarda. Não valia a pena passar por mais nenhum tipo de vergonha, humilhação e constrangimento.

Notas de rodapé:
1) Coloridades – O mesmo que cores variadas.
2) – À francesa – Sair, dar o fora, de um determinado local, às escondidas, sem ser visto ou notado.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Brasília Distrito Federal. 16-5-2023

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