terça-feira, 2 de maio de 2023

[Aparecido rasga o verbo] Deu merda

Aparecido Raimundo de Souza 

UMA DAS MANIAS inseparáveis do Carneiro: ler no banheiro, sentado com a bunda branca no vaso azul. Aposentado há mais de três anos do INSS, passava praticamente o dia inteiro – ora folheando jornais – ora absorto em algum romance de um autor de sua predileção. Nessas horas, se alguém da família (tinha mulher e duas filhas adolescentes) sentisse vontade de usar o sanitário, das duas uma: ou elas aguentavam o tranco, segurando o horror de não fazer o barro descer pelas pernas, ou esperava, pacientemente, pelo bom senso do sujeito, até que atinasse com as carências alheias de seus pares e resolvesse desocupar a moita. Era assim o tempo todo. 

Dia após dia. Mês após mês. Entrava ano, saia ano. Nada mudava no cotidiano daquelas três mulheres que sofriam até na hora de se livrarem das necessidades mais prementes. Em paralelo, por comodidade, aceitavam tudo e cruzavam os braços sem partirem para o grito de independência ou morte. O natal veio e bateu às portas. Mais um natal igual a tantos passados. A uma semana da virada, uma parentada que morava onde Judas perdeu as botas –, ou melhor, um pouquinho para lá –, resolveu marcar presença e, diga-se de passagem, maciça. Chegou uma galera respeitável, de supetão, sem avisar, sem dar um telefonema. Veio a Narcisa, irmã de Carneiro, o marido Teobaldo e quatro filhos, além da empregada Taiszinha. 

Essa coisinha fofa se constituía numa loirinha de dezesseis anos, dona de umas pernas roliças e um traseiro volumoso, sem falar nos seios fartos e no resto, que dava água na boca só de imaginar as loucuras que poderiam produzir ao menor toque de um coração apaixonado. Carneiro se encantou à primeira vista com a beldade e pensou, com seus botões: “Antes dessa moleca ir embora vou dar um jeito de balançar nossos esqueletos”. De roldão, os sogros Tomazinho e a rabugenta da mulher dele, a Conceição (pais de sua esposa Feliciana), e um netinho de oito anos cujos consanguíneos moravam nos Estados Unidos, pessoas que nunca arredavam os pés de seus quadrados –, não se sabe por que cargas d’água, sem prévio aviso vieram ajudar a engrossar o exército que nem em datas festivas davam os ares da graça. 

Com a casa cheia, saindo gente pelo ladrão, dona Feliciana, companheira de longos anos de união conjugal, achou por bem chamar a atenção do marido para alguns detalhezinhos básicos e importantes:
— Lembre, meu velho. Papai e mamãe estão aí. De contrapeso, sua irmã, o marido, os filhos e a empregada. Eles nunca visitaram a gente. Manera com o banheiro. Evite ir cagar e esquecer do mundo. Não quero saber de falatórios.

Nos primeiros dias, Carneiro se mostrou um excelente anfitrião. Abriu o rosto em mesuras e sorrisos francos. Um perfeito cavalheiro. Chegou a ponto de receber, do sogro, um elogio digno de ser registrado:
— Estou gostando de ver, Feliciana. Carneiro mudou da água para o vinho. Ainda bem que parou com aquela história de fazer filho no banheiro. Como foi que você conseguiu essa façanha?

A filha se abriu em sorrisos enquanto servia um café ao pai:
— Depois que Carneiro se aposentou – mentiu –, virou outro homem. Acho que o serviço – ou melhor, o que fazia na repartição, deixava a cabeça dele estressada. Graças a Deus superou... está curado...
Contudo, a criatura andava longe de ser feliz. De saco cheio, pelas medidas, com aquela pá de gente circulando por todos os lados, tirando a sua liberdade, e ainda, interferindo em seu velho e inseparável hábito de ficar trancado no banheiro. Se pôs a pensar numa saída. Resolveu, depois de matutar com seus botões, que daria um basta. Chutaria o pau da barraca. Às favas o que prometera à Feliciana:
— Não perdem por esperar.

Manhã seguinte, último dia do ano (na noite anterior havia bolado um plano de ação). Iria pô-lo em prática. Pulou da cama antes das cinco. Fez os preparativos para o banho. Catou os jornais na varanda. Voou para o banheiro. Entretanto, ao chegar, percebeu que alguém mais esperto que ele se antecipara:
— Só me faltava essa...
Amarrou a cara. Quem, diabos, madrugara? O sogro Tomazinho? A velha coroca da Conceição? Narcisa? Talvez fosse a Narcisa, ou o Teobaldo. Quem sabe um dos quatro filhos. Havia, ainda, a possibilidade de ser o garotinho cujos pais moravam nos Estados Unidos. Olhou de um lado, depois de outro.

Coçou a bunda longamente. Ensaiou um peido que fedeu os fundilhos da cueca. Suas filhas, àquelas horas, deveriam estar no quinto sono. Decidiu espiar pelo buraco da fechadura. Não obteve o resultado satisfatório. O misterioso ocupante pendurara uma roupa escura na maçaneta. Lembrou da janelinha que dava para o cômodo da dispensa. Havia, nela, um tanque dividindo espaço com uma maquina de lavar roupas antigas e o resto abarrotado com uma porrada de quinquilharias. Pior, na história. A vontade de mijar. Não estava aguentando. Fazia piruetas, desenhando, com as pernas, pequenos círculos, como se dançasse uma dança dantesca, a bexiga a ponto de estourar.

Na verdade, Carneiro sentia na própria pele o veneno que impunha aos seus ao longo dos trezentos e sessenta e cinco dias do ano, quando entrava e esquecia da mulher e das filhas. O feitiço virara literalmente contra o feiticeiro:
— Maldição. Quem será que entrou nessa droga com o dia ainda às escuras?

Resolveu tirar a coisa em pratos limpos. Seguiu para a varanda. Subiu no tanque. Alcançou a janelinha. Teria, por intermédio dela, uma visão completa do interior do banheiro, inclusive se a criatura estivesse no chuveiro ou sentada no vaso, poderia ser pega no flagra. Com cautela, espiou. No que esquadrinhou para dentro da peça, tapou a boca sufocando um grito.

Arregalou os olhos quase à solta-los das orbitas. Não poderia ser verdade. Bisbilhotou de novo. Fez o sinal da cruz. O que viu, por momentos o fez esquecer da vontade apertada de tirar a água do joelho. A empregada de Narcisa, Taiszinha, naquele exato momento, completamente nua, fazia poses eróticas diante do espelho mudo, se fotografando freneticamente ao sabor de um celular. Assim, Carneiro passou a se deleitar com aquele pedaço de mau caminho sem ser descoberto pela vítima. E tome poses. Vira daqui se contorna dali se inclina para lá, se verga acolá...
Inopinadamente achou mais cômodo descer o calção. Ficou pelado, o negócio enorme entre as pernas, duro, ereto, pronto para o ataque dos dedos, num cinco contra um, como fazia dias não colocava em prática.

E a Taiszinha seguia ávida, festiva, sorrindo marotamente para a tela do aparelho. Virava daqui se contorcia, rebolava para lá, abria as pernas, alisava as partes secretas, empinava a bundinha, chupava o indicador com sofreguidão. De repente, do nada, quebrando o silêncio, um estrondo vociferou na tranquilidade sepulcral. O tanque não suportou com o peso do Carneiro. A cuba se partiu em duas fazendo com que o espião caísse de bunda, como uma fruta madura, estabanando a carcaça no chão de cimento, em meio a garrafas quebradas, vassouras, tábua de passar roupas, os cambaus. Aos gritos e berros, lamentações e desnorteado, o infeliz se viu socorrido pelo sogro Tomazinho, pela irmã Narcisa e Teobaldo.

Dona Feliciana, acordou assustada. Ao tomar conhecimento do ocorrido, pescou a coisa toda no ar, quando bateu de frente com a situação que se descortinava à sua realidade brutal. Com uma cáfila de pulgas atrás da orelha, não quis fazer parte da comitiva que se prontificou a levar em celeridade afervorada, o Carneiro todo entropigaitado para a emergência do pronto socorro. A bondosa estava furiosa, irritada, pê da vida, e sobretudo, intrigada, intrigadíssima com o marido pelado, às cinco horas da manhã, zanzando pela casa, feito barata tonta:
— Assim que ele voltar acertaremos as contas...

Aconteceu que depois desse incidente, o Carneiro, coitado, em vista dos fortes hematomas, e engessamentos sofridos, não retornou. Amargou o réveillon sozinho e ainda permaneceu por quatro semanas no hospital. As filhas se prontificaram a ir visita-lo, como também os sogros. Dona Feliciana, pensou, pensou..., pesou os prós e contras e chegou à conclusão de que o Carneiro estava de cabeça virada. Além de atravancar o sanitário, deveria igualmente vigiar as filhas menores quando elas se trancavam para o banho:
— É um tarado, esse desgraçado.
Resolveu pedir a separação. Mudou, de mala e cuia, para a residência dos pais. Carneiro, coitado, da noite para o dia, se viu só. Sem a casa, a mulher e as filhas. O mais degradante: não pode, sequer, se despedir, como pretendia, “nem balançar os esqueletos” com a encantadora e tresloucada Taiszinha.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Basílica de Nossa Senhora Aparecida, em Aparecida, São Paulo. 2-5-2023

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