terça-feira, 2 de maio de 2023

[Livros & Leituras] Moçambique – Terra queimada

Faz duas semanas, minha mãe me estendeu este livro, comprado por ela em 1976, ano da publicação: “Queres levar?”

Editar Jorge Jardim em Portugal e em pleno "processo revolucionário em curso" poderá ser acto de loucura para uns, ou acto de coragem para outros. Como editor responsável por esta obra, penso não ser nem uma coisa nem outra: será apenas um acto de intervenção democrática.

Publicar este livro tornou-se um imperativo. Inadiável. Urgente. Fundamental para a interpretação de um dos aspectos mais sinistros do "processo revolucionário": a descolonização "exemplar". A visão de centenas de milhares de refugiados de Angola e Moçambique vegetando numa sociedade metropolitana incapaz de os absorver, é demasiado degradante para que seja justo conhecer apenas a tese oficial ou "revolucionária".

A consequência de dezenas de milhares de mortos, negros e brancos, portugueses, angolanos e moçambicanos, faz-nos perguntar baixinho, no recolhimento de uma auto-crítica inevitável, o porquê de tudo isto. O "porquê" e o "quem foi". Quem foi o responsável, é uma pergunta concreta para a qual a paz interior exige uma resposta concreta.

Jorge Jardim, ao escrever Moçambique-Terra Queimada, interfere no tribunal da História. Dramaticamente, fornece elementos para o tribunal dos homens.

Mas, para o grande público, quem é Jorge Jardim? Quem é este homem que foi apresentado à Opinião Pública como altamente perigoso? Em Junho de 1974, poderia ler-se na imprensa portuguesa que as Forças Armadas em Moçambique tinham recebido instruções para capturar ou abater o eng.° Jorge Jardim... Estas instruções haviam sido emitidas pelo general Costa Gomes.

Jardim, que chegou a ser denominado o "Lawrence de África", tem 56 anos e doze filhos. Natural de Lisboa, viveu 22 anos em Moçambique onde, aliás, nasceram seis dos seus filhos. Todos ali foram educados e aprenderam, como o pai, a "sentir e pensar Moçambique". Como moçambicanos.

Engenheiro agrónomo, soldado e diplomata, homem de negócios e agente secreto, caçador de feras e jornalista, piloto aviador e pára-quedista, chefe de família e aventureiro audacioso, político desconcertante e estratega sereno, Jorge Jardim conhece profundamente Moçambique e todo o contexto africano. Manteve relações com quase todos os chefes do governo da África Austral, sendo conhecidas a sua amizade com o Dr. Banda, Presidente do Malawi, e a sua intimidade com o Dr. Kaunda, Presidente da Zâmbia.

Figura lendária e controversa em todo o Ultramar, sobretudo a partir de 1961 com o eclodir da guerra de Angola, Jardim viu-se perseguido e obrigado a fugir de Portugal após o golpe militar de "25 de Abril". Fuga que, aliás, descreve em algumas das mais emocionantes páginas de Moçambique-Terra Queimada.

Colaborador íntimo de Salazar a quem admirava e de quem, talvez, tenha apreendido o culto da eficácia, o eng.° Jorge Jardim possuía, muitos meses antes da Revolução das Flores, um plano para a independência de Moçambique, plano que tinha o acordo da Zâmbia, do Malawi, da Tanzânia e da própria Frelimo. É este um dos aspectos mais sensacionais deste livro a demonstrar que "nunca tão poucos traíram tantos em tão pouco tempo". A demonstrar que esses poucos têm de ser julgados. Dramaticamente já.

Contudo, esta obra não revela apenas o plano, conhecido de alguns como o Programa de Lusaka, nem é somente uma colectânea de memórias. Vai mais longe para se tornar uma arma de combate em que descreve, documenta, analisa e denuncia os crimes cometidos dentro de um plano premeditado, cujos responsáveis aponta.

"Quero voltar ainda a Moçambique, para em Moçambique morrer. Pertenço àquela terra". Este é o grito do Autor, expresso nesta obra, mas é também o grito de muitos milhares de homens e mulheres que foram obrigados a fugir.

O Editor 
Editorial Intervenção, Lisboa, 1976. 
Marcação de Texto: JP, 29-4-2023

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