quarta-feira, 15 de maio de 2013

Os filhos da despesa

Henrique Raposo

O general Garcia dos Santos (oficial do 25 de Abril e do 25 de Novembro; chefe da casa militar do Presidente Ramalho Eanes) relata aqui as reuniões entre Ramalho Eanes e os partidos (1976-1979). No prefácio, Joaquim Aguiar afirma que estes relatos têm o dom olímpico da neutralidade e o odor da inocência. Com o devido respeito, não compro a tese. Ninguém é neutro, ninguém é politicamente virgem, essa maçã é sempre comida até ao talinho. Sim, é verdade que Garcia dos Santos apresenta um relato sequíssimo, quase em modo excel, de factos e declarações. Também é verdade que ninguém pode fugir a esta lista de dados concretos. Porém, qualquer encadeamento de factos já tem em si mesmo uma visão pessoal. Não existe neutralidade olímpica, existe apenas honestidade intelectual. Neste sentido, Apontamentos Políticos - Eanes e os Partidos é um contributo honesto para a compreensão dos primeiros anos deste regime.
E apetece dizer que os anos fundadores não foram muito diferentes do tempo que estamos a viver, o tempo que está a mostrar a falência de uma maneira de fazer política. Ou seja, a semente do diabo que estamos a sentir em 2013 já estava plantada em 1976-1979. Que semente é essa? A prevalência absoluta do cálculo táctico. Ao longo destes quatro anos de reuniões, há uma coisa que salta à vista: ninguém estava muito interessado em discutir os problemas do país; o permanente jogo palaciano entre os partidos abria um abismo entre o sistema partidário e a realidade financeira, económica e social de Portugal. É como se a nação concreta fosse uma questão secundária para os partidos. Perante este divórcio quase cómico entre partidos e realidade, confesso que apanhei uma espécie de susto retroactivo: o país andava ao deus dará, em roda livre, porque ninguém queria assumir o ónus das escolhas governativas que poderiam evitar o colapso. As raras conversas sobre a governação concreta eram rapidamente remetidas para slogans vagos. Cunhal não era o único a usar a cassete.
Estes primeiros anos criaram assim o absurdo paradoxo que marcou até hoje a vida da III República: aqueles que deviam ser os primeiros a percepcionar os problemas concretos são, na verdade, os primeiros a recusar ver esses problemas. Em consequência, a entrada do FMI em 1977 (e depois em 1983) foi apenas a conclusão óbvia deste estado de coisas. O país tornou-se ingovernável, porque a governação não era o business dos partidos. O seu business era a sobrevivência eleitoral, a conquista da posição-charneira dentro do sistema partidário (não se percebe o PS sem esta ideia em mente ) e a captura do aparelho de estado. E, importa frisar este terceiro factor, porque os partidos precisavam do estado para sobreviver. Porquê? Num livro fundamental, Carlos Jalali explicou que, ao contrário dos seus congéneres europeus, os partidos portugueses tinham uma reduzida base social, não eram emanações da sociedade civil . O seu poder advinha da infiltração e duplicação das estruturas do estado. Para mal dos nossos pecados, os partidos aprofundaram este adn ao longo das décadas seguintes. Com prazer e proveito, os aparelhos partidários aprenderam a responder apenas às ansiedades do estado, afinaram os ouvidos para ouvir somente a frequência emitida pela despesa, a sua mãe.
Título, Imagem  e Texto: Henrique Raposo, Expresso, 15-05-2013

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