João Miranda
Tenho 86 anos [acho a minha idade relevante no
que toca a pagar impostos], e modéstia à parte, sempre honrei o meu país
pela forma como o representei em todos os palcos, portugueses e estrangeiros [fiz o que se espera de um bom profissional], sem
pedir nada em troca [todos me devem, mas eu não cobro]
senão respeito, consideração, abertura– sobretudo aos novos talentos -, e
seriedade na forma como o Estado encara o meu papel como cidadão e como artista
[ask not what you can do for your country ...].
Vivi a guerra de 36/40 com o mesmo cinto com que todos os portugueses
apertaram as ilhargas [por algum motivo acho que devo
ter privilégios por ter vivido o período da guerra civil espanhola].
Sofri a mordaça de um regime que durante 48 anos reprimiu [sou uma vítima do fássismo, mandem dinheiro] tudo o
que era cultura e liberdade de um povo para o qual sempre tive o maior orgulho
em trabalhar [isto também é relevante para pagar menos
impostos que vocês]. Sofri como todos, os condicionamentos da
descolonização [isto também dá pontos?]. Vivi o
25 de Abril com uma esperança renovada, e alegrei-me pela conquista do voto,
como se isso fosse um epítome libertador [sou um
democrata, paguem vocês os impostos].
Subi aos palcos centenas, senão milhares de vezes, da forma que melhor
sei, porque para tal muito trabalhei [as outras
pessoas que pagam impostos não trabalham].
Continuei a votar [sou tão magnânimo],
a despeito das mentiras que os políticos utilizaram para me afastar do Teatro
Nacional [um lugar meu por direito].
Contudo, voltei a esse teatro pelo respeito que o meu público me merece [ai, sou mesmo tão magnânimo] , muito embora já coxo
pelo desencanto das políticas culturais [paguem
impostos, a cultura não pode morrer] de todos os partidos, sem excepção,
porque todos vós sois cúmplices da acrescida miséria com que se tem pintado o
panorama cultural português [já disse que a cultura
precisa de pagadores de impostos?].
Hoje, para o Fisco, deixei de ser Actor…[obrigam-me
a pagar os impostos que as outras pessoas pagam] e comigo, todos os meus
colegas Actores [com letra maiúscula] e
restantes Artistas [idem] destes país – colegas
que muito prezo e gostava de poder defender.
Tudo isto ao fim de setenta anos de carreira! É fascinante. [eu,eu, eu, eu....]
Francamente, não sei para que servem as comendas, as medalhas e as
Ordens, que de vez em quando me penduram ao peito?
[mandem menos caricas e mais dinheiro]
Tenho 86 anos, volto a dizer, para que ninguém esqueça o meu direito a
não ser incomodado pela raiva miudinha de um Ministério das Finanças [o mundo gira à minha volta, mais ninguém está a ser
afectado pela austeridade], que insiste em afirmar, perante o silêncio
do Primeiro-Ministro e os olhos baixos do Presidente da República [mal agradecido, depois da campanha que fiz por ele],
de que eu não sou actor [querem que pague impostos
como os não actores], que não tenho direito aos benefícios fiscais [tentei que não percebessem até este ponto no texto que o
problema é que me querem obrigar a pagar os mesmos impostos que aos restantes
cidadãos] , que estão consagrados na lei, e que o meu trabalho não pode
ser considerado como propriedade intelectual [é
realmente estranho].
Tenho pena de ter chegado a esta idade para assistir angustiado à rapina
com que o fisco está a executar o músculo da cultura portuguesa [ou seja, eu]. Estamos a reduzir tudo a zero… a
zeros, dando cobertura a uma gigantesca transferência dos rendimentos de quem
nada tem para os que têm cada vez mais [eu sou dos que
nada têm].
É lamentável e vergonhoso que não haja um único político com
honestidade suficiente [não me apanham em mais nenhuma
campanha eleitoral] para se demarcar desta estúpida cumplicidade entre a
incompetência e a maldade de quem foi eleito com toda a boa vontade, para
conscientemente delapidar a esperança e o arbítrio de quem, afinal de contas,
já nem nas anedotas é o verdadeiro dono de Portugal: nós todos! [Portugal é de todos, logo devo pagar menos impostos e
vocês mais impostos para subsidiar a cultura]
[...]
Original aqui
Título e Anotações: João Miranda, Blasfémias,
27-05-2013
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