Gabriel Mithá Ribeiro
O que está em curso é uma
loucura civilizacional pensada, programada, estudada, publicada. No seu âmago
está o sistema universitário, o Cavalo de Troia do Ocidente.
Nos tempos em que a TSF era uma
rádio que não me obrigava a desligar ou a mudar de estação – antes de Bruno
Nogueira, Pedro Adão e Silva e Pedro Marques Lopes, Ricardo Araújo Pereira e de
me saturar de um “Fórum TSF” em tom paroquial costumeiro ou da ladainha matinal
de Fernando Alves que
liga-tudo-com-tudo-via-poesia-para-acabar-sempre-amarrado-ao-politicamente-correto
– aprendi uma tese recorrente em Carlos Amaral Dias, parceiro de Carlos Magno,
quando em conjunto faziam o programa “Freud e Maquiavel”. A tese defendia que
no centro não se passa nada de importante. O que é verdadeiramente importante
passa-se nas periferias. Nada melhor do que a África para percebermos as
tentações da Europa.
Há décadas, um país africano
enveredou por um ciclo progressista radical dirigido pelo ‘Syriza’ da época.
Rumo a um futuro glorioso livre dos vícios do capitalismo (a senhora Merkel
daquele contexto), as ‘massas’ foram convocadas a participar ativamente no
exercício do ‘poder popular’, sintomas ainda vivos através da aprovação de
programas políticos, ‘orçamentos participativos’, decisões e candidaturas
‘cidadãs’ ao sabor dos apetites de novas ‘massas’.
Apesar de num tempo remoto não
ter sido assim e da persistência do autoritarismo, no passado recente o sistema
judicial do território africano regulava-se pela formalidade processual,
autonomia institucional, funcionava no interior dos tribunais, a lei tinha
algum valor. Até que irrompeu a revolução. Entre outras manifestações, nasceu
uma eufórica ‘justiça popular’ prenhe de urgências de mudança. Era preciso
combater a opressão e responder aos profundos anseios da população. Nada como
transferir o exercício da justiça para a praça pública, libertá-lo de
formalidades legais e processuais que o povo não compreendia, proibir a
advocacia, fazer entrar em cena o espetáculo público da violência, legalizar os
castigos corporais. A nova justiça era direta, exemplar, persuasiva pela
violência, simples, sem sombras de corrupção. Nunca como nos anos da revolução
a população sentiu a justiça tão perto. Praticamente não havia crimes. O homem
novo da sociedade nova estava a chegar.
Insensível, a realidade acabou
por se impor. O ciclo da orgia revolucionária esgotou-se. Pouco mais de uma
década passada, os governantes do país africano sentiram necessidade de retomar
formalidades governativas antes abjuradas. Descobriram que a justiça teima em
não voltar ao antigamente. Parte da população, agora bem mais desconfiada e
desprotegida, não se adapta. À revelia das recicladas novas boas intenções dos
pós-revolucionários, em momentos imprevisíveis, as antigas ‘massas’ dão vida ao
recalcado ‘poder popular’. Fazem-no por conta própria, queimando vivos
suspeitos de agressão criminal, fenómeno nunca visto antes da revolução. Os
linchamentos têm lugar em subúrbios onde hoje o discurso das pessoas comuns
sobre o mundo continua fortemente influenciado pela ação do grande herói dos
anos revolucionários, morto há quase três décadas.
Espasmos de regressão
civilizacional que deixam atónitas as elites. Como sempre progressistas,
persistem na procura de justificações no ‘colonialismo’, no capitalismo, no
Ocidente, nos ricos.
Indissociável da anterior, os
tempos eufóricos de ‘mudança’ legaram outra herança às gerações que se sucedem:
a desregulação da relação cultural com a propriedade, um referente-chave dos
equilíbrios sociais. A propriedade comunitária africana tradicional e a
propriedade individual, esta há muito progressivamente introduzida pelos
colonos europeus, não se atropelavam. Mas ambas foram abruptamente
deslegitimadas pelos revolucionários. Passou a valer apenas a utopia da
propriedade coletiva do estado, estranha a tradições e práticas preexistentes.
Na ressaca desta engenharia progressista, a colheita também chegou. A
criminalidade disparou como nunca entre a gente comum, hoje ainda mais
condicionada pela pobreza e cujo inconsciente coletivo mantém latente os princípios
dos dias anteriores do ‘poder popular’: a propriedade é um roubo, é um produto
da opressão.
O tempo passa, os lugares
mudam, porém a condição humana continua tentada pelo abismo. Para já, o
verdadeiro Syriza limita-se à informalidade dos que não usam gravata, oblitera
as mulheres de cargos de liderança ministerial, exibe o poder num conselho de
ministros para espetáculo público em direto nas televisões, os seus líderes
evidenciam tiques de quem pode romper acordos formais com outros estados democráticos
soberanos, paira o fantasma de se poder mexer na questão sensível da
propriedade e, não menos, é manifesto o desejo de romper com o passado
imediato. Sintomas da propensão para a regressão civilizacional própria da
violência revolucionária.
Talvez seja tempo de os
europeus ocidentais provarem do veneno que os seus intelectuais ajudaram a
espalhar pelo mundo. Esperemos pela Grécia das próximas décadas para ver até
que ponto desabrocharão na vida quotidiana as sementes de um ideário
progressista exponenciado pelo exercício do poder, sobretudo se alimentadas
pela imagem do novo herói revolucionário, mesmo que vá dando sinais de
domesticação.
Entre os europeus ocidentais,
o exorcismo do passado faz com que a extrema-direita de hoje viva sujeita a
forte escrutínio público. É mal tolerada em sociedades muito conscientes de que
determinados aspetos das suas utopias estão para além dos limites da
razoabilidade, do humanismo, da decência e tem espaço apenas fora do aparelho
do estado. Risco maior é o de o equivalente não acontecer com a
extrema-esquerda. O seu lastro histórico de irresponsabilidades, crimes,
genocídios, purgas, perversões civilizacionais não é menos evidente. Porém, há
décadas que a extrema-esquerda se reproduz em rédea solta no berço mais ameaçador:
no interior da máquina do estado onde as utopias radicais são sempre nefastas.
Dever-se-ia ter aprendido mais com o nazismo.
O que está em curso não são
meros lapsos ou incidentes. É produto de uma loucura civilizacional pensada,
programada, estudada, publicada. No seu âmago está o sistema universitário, o
Cavalo de Troia do Ocidente. Em tempos de sociedades do conhecimento, é a
partir dele que o resto é condicionado com muitas vantagens e sérias
desvantagens.
O facto é que as sociedades
vão acumulando lixo intelectual à custa do muito que gastam com o ensino. Os
Syriza, Podemos, Bloco de Esquerda e Derivados são frutos de sementes plantadas
em viveiros universitários, privilégio felizmente impensável de ser concedido
ao alter-ego, a extrema-direita. E como não existem economias sem crises
cíclicas – qualquer sistema dinâmico que envolva infindáveis relações humanas
tem ciclos de ascensão, declínio e renovação permanentes –, e supondo que se
continue a fingir que o ensino superior não constitui um sério problema
político, a cada novo ciclo de crise económica o Ocidente pagará um preço
crescentemente pesado pela sua indolência à sovietização das suas sociedades.
Além dos estragos praticamente
irreparáveis no domínio das atitudes e comportamentos no ensino básico e
secundário, considerando a repercussão social que isso acarreta em tempos de
escolarização massificada, a fertilidade da semente não deixa dúvidas. Hoje,
qualquer ideia de cidadania que caia fora do etéreo núcleo progressista soa a
errada, a ataque à dignidade da condição humana, a ataque aos desfavorecidos, a
ataque às minorias. O simples bom senso deveria recomendar o contrário.
Cidadania responsável define-se pelo que está longe dos Syriza, Podemos, Bloco
de Esquerda e derivados, universidades ‘progressistas’, comunicação social ‘de
causas’.
Descontando os clássicos, se
os livros de geração recente ainda podem ser estimáveis, entre-se numa qualquer
das grandes livrarias, como as FNAC ou as Bertrand, percorra-se os escaparates
das ciências sociais, humanidades e literaturas para se perceber como se
reproduz até à náusea este estado de demência civilizacional. Para que o
enunciado não fique sem conteúdo, recomendo um dos últimos ensaios para consumo
massificado publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, financiada por
‘capitalistas’. O título é “Confiança nas instituições políticas” (2015, nº50).
Ana Maria Belchior é a autora, universitária especialista em ciência política.
O conteúdo do livro segue uma
lógica intrigante. Na identificação de responsabilidades pela desconfiança das
sociedades nas suas instituições políticas, o leitor vai sendo empurrado para o
interior dos partidos políticos moderados do centro. Em Portugal, os maus
exemplos preferenciais vêm de atitudes de governantes do PSD. Os do PS são mais
poupados. Na perspetiva do ensaio, as pressões de fora das forças políticas
moderadas ficam invisíveis ou funcionam como se não tivessem os mesmos ou
piores efeitos no desgaste das instituições, pressões vindas dos eufemísticos ‘movimentos
sociais’, sindicatos, universidades ‘progressistas’, jornalismo ‘de causas’,
entre outros, e como se esta panóplia fosse apenas ‘cívica’ ou ‘despolitizada’
quando sabemos serem as mil e uma caras do radicalismo político, o seu habitat
natural. Depois, o texto ultrapassa em pose de altivez asséptica o crescimento
da extrema-direita na Europa para terminar na glorificação nada subtil da
academicamente designada “esquerda-libertária” (p.78). Páginas adiante, ficamos
ainda melhor iluminados através da explicação da ideia de “democracia forte”,
atribuída a Benjamin Barber, caraterizada pelo “(…) sólido envolvimento da
participação dos cidadãos (…)” contra a “(…) ‘democracia fraca’ ou ‘magra’ (a
democracia representativa liberal)” (p.82).
Em suma, a ciência política
atesta, num tipo de escrita pensado para o grande público, as virtudes da
‘democracia forte’, bem como que o seu potencial paira nos antípodas das atuais
tendências ‘liberais’, as dos partidos políticos moderados. Na prática, mais
uma argumentação panfletária escondida numa duvidosa sustentação teórica e numa
objetividade estatística servida em doses maciças.
Neste filme de terror, só uma
estulta ingenuidade faz com que não se perceba que existem instituições a que
as sociedades atribuem responsabilidades fundamentais, por isso muitas delas
são públicas, ávidas de empurrar os sistemas sociais e os sistemas políticos
ocidentais borda fora ‘desta’ sociedade e ‘desta’ democracia ‘liberais’ em prol
de ‘outras’, as ‘alternativas’ de tipo ‘forte’, eufemismos que vão preparando o
caminho de regresso às democracias ‘populares’ e às justiças ‘populares’
inspiradas no sempiterno ‘socialismo científico’.
Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Bolseiro de
pós-doutoramento em Estudos Africanos, autor de O Ensino da História, Observador,
6-2-2015
Grifos: JP
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