terça-feira, 2 de maio de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Exalação fétida de conversa não cadastrada

Aparecido Raimundo de Souza

1
A jovem entra na sorveteria, a única da cidade, e vai até o freezer e escolhe um picolé.  Na hora em que se dirige ao rapaz no caixa, para pagar, ele a interpela. 
 - Oi linda. Você é nova por aqui, não?
- Sim. Como sabe?
- Essa é a segunda vez que a vejo.

Risos.

- E quando foi à primeira?
- Ontem, logo cedo, quando abria meu estabelecimento. Eu a vi com um rapaz saindo da rodoviária.
- Aquele é meu irmão. Cheguei e São Paulo. Ele veio uma semana antes de mim.

- Legal. Posso fazer outra pergunta?
- Fique à vontade.
- Se quiser, não precisa responder.
- Sem problema.

- OK. O que você é do professor Brás.
- Namorada.
- Fala sério?
- Pareço estar mentindo?
- É a impressão que tive. Como dizem por aí, a primeira impressão não é a que fica, mas a que o sujeito alimenta dentro dele.

- Desculpe. Sinto muito. Mas sou de fato a namorada do Brás. Cheguei da capital e estou hospedada na casa dele. Como ele trabalha na faculdade de sete da manhã às dez da noite, meu irmão foi me buscar. Aproveitamos para darmos umas voltas para eu conhecer um pouco a cidade, etc. etc...

- Realmente fiquei sabendo que o professor Brás estava de compromisso. Em princípio supus que fosse brincadeira, depois, a Chica, ali da birosca, em frente da estação de trem, me falou que era com uma pessoa de fora.  Horas mais tarde, veio aqui a Rute do Samuel do armazém e me confirmou não era ninguém de fora, mas uma moça daqui mesmo da região. Ainda assim não levei muita fé. Chica mente muito e Rute não se escreve o que fala...

2
- Mas desta vez elas não mentiram. Sou eu mesma.
- Desculpe senhorita. Estamos aqui proseando e ainda não perguntei seu nome. Qual é mesmo a sua graça?
- Larissa Pederneira.
- Larissa. Bonito nome. E como é o nome do seu irmão?
- Belizário.
- Belizário?
- Sim. Acaso ele esteve aqui?

- Não exatamente. É que... bem vou ser franco. Não gosto de meter o bedelho aonde não sou chamado, porém, o povo está comentando...
- O que o povo está comentando?

- Nada, senhorita. Esquece. Desculpe.

- Agora fale. Começou, termine. O que rola?
- Todos aqui conhecem a fama do professor Brás.
- Que fama?
- Pelo amor de Deus, peço que esqueça.

- Na, né, ni, nó, nããããoooo... fala, cara. Seja o que for, desembucha. Que fama tem o professor Brás?

- De comilão. Comentam por aí que ele já “papou” umas alunas do turno da noite. Do vespertino não, porque são menores. Todavia, do noturno, pelo menos umas dez. Nesse horário pra senhorita ter uma ideia, só frequentam as gatas de vinte pra cima... desculpe. Falei. Por tudo quanto é mais sagrado, morre aqui esse assunto...

- Disso tudo eu já sabia antes de chegar. Por isso meu irmão Belizário veio na frente.  Pra sondar o ambiente e ver se o meu namorado Brás é de confiança.
- E a que conclusão seu irmão chegou?
- Que o professor Brás, meu namorado é um homem íntegro. Tudo o que falam por baixo dos panos, são intrigas de uma galerinha que não gosta dele.

- Entendo...
- Por acaso fora essa história do Brás ter “papado” mais de uma dezena, tem alguma outra coisa que deprecie ou que enxovalhe a moral dele?
- Claro que não senhorita Larissa. Só comento o que as pessoas quando vêm aqui tomar sorvete acabam abrindo a boca e eu não posso deixar de ouvir.

- Ora, vamos, pode me falar. Prometo que nada do que conversamos sairá daqui.
- Teria, mas se seu irmão averiguou tudo como manda o figurino... melhor deixar quieto.
- Amigo, me ouça com atenção. Se sabe de algum outro podre, ainda que por ouvir dizer, por favor, quero tomar conhecimento. Afinal, é meu namorado, poderá vir a ser meu marido... fale. Não enrole... vamos, sou toda ouvidos.

- Eu...
- Sei que tem mais coisa. Estou esperando...
- Na verdade, falam que o professor Brás tem uma namorada.
- Sim, isso é ponto pacífico. Sou eu.

- Pelo que a galera comenta, a boca miúda, o relacionamento do professor Brás é com outra...
- Outra? – Risos - Que outra?
- Uma tal de Ana Angélica. Por sinal, aluna dele... a moçada apelidou a dita de felizarda.

- Dita, que dita? Estou boiando, cara. Dita, Ana Angélica ou Felizarda?
- Calma senhorita Larissa. O nome da moça é Ana Angélica. A dita, que eu mencionei é essa garota. A dita é o modo da gente por essas bandas fazer referência a alguém. A dita sirigaita, a dita aluna... então no caso do professor Brás, a dita, a Ana Angélica é a felizarda. 

- Entendi. Em outras palavras, a sortuda, a escolhida.
- A bola da vez. A senhorita compreendeu direitinho.
- Que mais?
- Ontem mesmo comentavam no banco, à hora em que fui depositar a féria aqui da sorveteria, que o professor Brás mandou vir um rapaz da Capital (pelo que entendi seu irmão, desculpe se não for exatamente isso), para disfarçar as aparências. Maquiar. Esse rapaz, seu suposto irmão, ficaria com as moças que frequentam a casa do professor, para evitar que a Ana Angélica, quando pintasse na área (ela chega por volta das oito horas, como a senhorita e vai embora à noite), não desconfiasse das trapaças e tramoias do professor Brás.

- Que situação esquisita essa que está a me revelar! Estou passada. Boquiaberta, pra ser mais precisa.
- Se a senhorita pretende botar as coisas em pratos limpos, por gentileza, lhe peço encarecidamente, não fale para ninguém que foi eu quem lhe contou...

- Bem meu querido, verdade ou mentira, até prova em contrário, eu sou a oficial. Se essa felizarda, a tal da Ana Angélica não for produto da imaginação de quem não tem o que fazer, o assunto morre aqui. No entanto, meu amigo, se tudo o que me disse tiver um tantinho assim de veracidade, o Brás me paga. Eu mato. Juro que mando o desgraçado ligeirinho comer capim pela raiz no cemitério local. Essa porcaria de cidade primitiva deve ter cemitério, espero?!...
- Tem sim. Saindo da cidade, lado oposto de onde a senhorita chegou, indo pras bandas dos sítios e fazendas.

- No mesmo pé, se na investigação que eu fizer, descobrir que tudo não passa de fofoca, futrica, disse me disse, boto fogo nessa droga de suburbiozinho provinciano enfurnada no cu de judas e não deixo nenhum ser vivo pra contar história.  Pense numa garota furiosa...

- Senhorita, acredite.  Não somos fofoqueiros.  Falamos, eu, pelo menos, só discorro do que escuto desse lado do balcão. Uma vez mais peço um milhão de desculpas. De qualquer forma...
- Termine...
- De qualquer forma, até prova em contrário, a Ana Angélica, pra toda a cidade é a oficial... espero que tudo se desembace e a senhorita saia vencedora.
- E sairei, pode ter plena certeza.

3
- Percebo que a senhorita levou a coisa a sério.
- E não é para levar?
- Sem dúvida. Estou vendo que ficou vermelha de raiva. E ri descontrolada, como se estivesse furiosa.

- E quem lhe disse que não estou? Não é só fúria, moço, é ódio também, aversão, repugnância, antipatia. Essa Ana Angélica que me aguarde...

- Mudando de assunto. É impressão minha ou a senhorita está se derretendo junto com esse sorvete que tem na mão?
- O quê? Como disse?
- A senhorita, me perdoe os modos de falar, mas vejo daqui que está se decompondo. Não seria melhor, antes que vire água corrente se colocar num palitinho?

- Palitinho? Que palitinho?!
- Igual ao que está aparecendo no final do seu sorvete.

4
- Por acaso o amigo depois de tudo o que me contou resolveu me tirar?
- Não, longe disso. Mas pensa comigo. Ou melhor, raciocine. Se a senhorita se colocar num palito igual a esse, prometo que lhe acomodo num cantinho da minha geladeira.
- Meu Deus, que cidade estranha. Que povo mais besta.

- Ora, vamos senhorita Larissa. Deixa lhe colocar na minha geladeira. Ou, se preferir, no freezer...
- E para quê? Não entendi. Dá pra desenhar?
- Me perdoa pelo que vou dizer. É para lhe chupar depois. Não, mil desculpas. Expressei o bagulho de forma errada. Não é chupar, é degustar, veja bem, degustar, saborear como um gostoso e delicioso picolé. A senhorita me lembra, imagine um picolé de coco.

- Meu amigo, ouça o que vou dizer. Estou lhe conhecendo hoje, não vou levar a sério essa sua brincadeira, por sinal, nada engraçada e agradável.  Poderia igualmente lhe mandar à merda. Como sou uma criatura educada... e levando em conta o favor que me prestou, abrindo meus olhos, com relação ao professor Brás, em vista disso, me farei de surda. Relevarei. Pra encerrarmos nosso papo, responda: você tem mãe?
- Tenho senhorita.
- Gosta dela?
- Amo...
- Então mude a prosa ou mandarei você enfiar sua querida mãezinha no rabo.  Agora cobre o sorvete e ponto final. 

 5
- Malcriada... só estou querendo ajudar.
- Desculpe. Mas quem fala o que quer, ouve o que não quer. Você é um palhaço. Um imbecil da pior marca...
- Desculpas senhorita Larissa... não tenho troco para cem reais. Depois a senhorita acerta.

- Passe bem. Leve para seus amigos dessa cidadezinha furreca, meu desprazer, e contrariedade em ter adentrado em seu buraco e falado com você. Maldita hora. Boa tarde.
- Boa tarde, dona Ana Angélica. Volte sempre...
- Meu nome é Larissa.
- Ana Angélica, a felizarda.
- Vá tomar no seu...

6
Nesse exato momento, em que Larissa sai à calçada, pinta, no pedaço, o professor Brás. Ao vê-la, o namorado corre pressuroso, em sua direção, as mãos estendidas, implorando um abraço. Contudo, a recepção não é das melhores.  O bicho pega. O tempo fecha.
- Sem vergonha... - berra Larissa... - vagabundo, desqualificado...

Sem entender lhufas do que acontece, Brás se vê agarrado no meio da rua, aos esbofetes e puxões de cabelos. 
- Que isso, amor? Calma, me solta. Está rasgando meu jaleco.
- Vou rasgar é sua fuça.
- Calma, meu amor. O que houve? 
- Vou lhe dizer o que foi que aconteceu. 
E tome tapas no rosto, unhadas, beliscões, chutes, o escambau…
- Calma, meu amor. Pare de me bater. Vejo que já conheceu meu amigo Camilo? Venha, vamos chupar um... um... ai... ui...
- Já proseei com o Camilo? Ele me contou tudo, abriu o jogo. Te entregou de bandeja... 
- Como ele me entregou?
- Ainda pergunta? Descarado...  patife.  Seu amiguinho aí me encheu o saco com a história de uma tal de Ana Angélica.  Como é mesmo? Ah... a felizarda...
- Como é que é, amor?

- Amor coisa nenhuma. Nosso compromisso acabou. Vou pegar minhas coisas e voltar pra São Paulo. Por que não me contou que tem outra mulher aqui nas redondezas e que ela se chama Ana Angélica.  Ana Angélica, a felizarda. A dita. Quer me explicar? Uma aluna sua? 

- Amor, amor, me escuta. Por Deus, me escuta.  Não sei do que está falando. Para de me bater um instante e me escuta.
- Como não sabe? Esse seu amigo imbecil abriu o jogo. Contou todos os seus podres. Vomita miserável, quem é essa sirigaita da Ana Angélica?

- Amor, não existe nenhuma Ana Angélica.
- Foi esse filho de uma égua do Camilo...
Enquanto fala, Larissa não abre a guarda. Segue distribuindo pescoções e sopapos no pobre e indefeso professor. Nessa altura, o infeliz tem o rosto todo coberto de sangue. O castigo segue, a todo vapor.

- Pelo amor de Deus... princesa me escuta. Me es... es... escuta. Como o Camilo pode ter lhe falado alguma coisa? Ele é mudo. Mudo e surdo de nascença.
- Agora é minha vez de perguntar: como é que é? Ele é o quê?!
- Eu disse que o Camilo é mudo. Mudo e surdo de nascença.

A multidão de curiosos que começava a criar forma compacta, em torno do casal, de repente, como por encanto, se dissolveu.      
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Do Rio de Janeiro. 1-5-2017

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