Alberto Gonçalves
É de notar que, com típica valentia e
apreciável objetividade, o ateísmo militante não rejeita todas as religiões de
igual modo. Na maioria dos casos, limita-se a rejeitar o cristianismo e o
judaísmo
Primeiro, a declaração de
desinteresses: exceto por um professor no ciclo preparatório, nunca conheci um
padre. Já vi padres, sei que existem, mas nunca falei com um ou sequer lhe fui
apresentado. Parece esquisito e, num país no fundo católico, se calhar é
esquisito. Mas o facto ilustra a distância a que cresci da religião, organizada
ou desorganizada. Nunca frequentei a catequese. Nunca assisti a uma missa
“regular”, das que não são cerimónia matrimonial ou fúnebre. Nunca experimentei
apelos espirituais. Nunca passei pela Cova da Iria. E nunca me julguei superior
por isso.
Ser ateu, à semelhança de não
ser sócio da Académica de Coimbra, é um acaso e um estado de omissão, que não
implica qualquer opinião depreciativa sobre o seu oposto (antes que me peçam
satisfações ou o escalpe, juro não sentir nenhuma repulsa pela Académica de
Coimbra). Se tanto, o que a religião me suscita é indiferença. Curiosamente,
inúmeros ateus discordam e transformam a mera ausência de fé numa fé
inabalável, ia escrever cega, na razão deles. Nos tempos que correm, há gente
altamente empenhada em enxovalhar os crentes e, possivelmente por ganharem à
comissão, convertê-los à descrença.
É engraçado que o proselitismo
ateu queira chamar a si pessoas que à partida considera rematados idiotas, um
contrassenso que estranhamente escapa a criaturas tão brilhantes. É engraçado
que muitos dos ateus em causa se aflijam com os crimes da Igreja e em
simultâneo ignorem o rastro de sangue das variantes “clássicas” ou
contemporâneas do credo marxista, das quais observam com rigor os respectivos
dogmas e sacramentos. Porém, verdadeiramente hilariante é que o próprio ateísmo
tenha assimilado os padrões, as regras e as estratégias da religião
convencional. Quando bandos de ociosos decidem imitar os evangélicos e enfeitar
autocarros de quinze países com a frase “There’s probably no God”, sabemos
estar no limiar da comédia involuntária. Porém, quando a campanha apenas se
circunscreve a países ocidentais, começamos a suspeitar que nem tudo aqui é
cómico e involuntário.
Convém notar que, com típica
valentia e apreciável objetividade, o ateísmo militante não rejeita todas as
religiões de igual modo. Na maioria dos casos, limita-se a rejeitar o
cristianismo e o judaísmo, leia-se os credos “familiares” à civilização que
permite a militância. Os credos restantes, talvez a título de exóticos, talvez
por receio de camiões desgovernados, são normalmente poupados à sobranceria. Se
não fosse absurdo, uma pessoa ficaria com a impressão de que estes peculiares
ateus se ofendem menos com o culto do divino do que com as sociedades em que o divino
não é omnipresente na vida “material”. Se não fosse absurdo, uma pessoa ficaria
com a impressão de que o problema destes peculiares ateus é com a liberdade. Se
não fosse absurdo, uma pessoa ficaria com a impressão de que estes particulares
ateus não prezam excessivamente o ateísmo.
Sendo absurdo, mesmo assim
algum ateísmo não disfarça a aversão que lhe suscita um lugar como Fátima. Para
um ateu comum, Fátima foi uma reação da Igreja ao anticlericalismo da época,
aliás decalcada de Lourdes até à minúcia: o contexto jacobino, a área remota,
as crianças pobres, a sincera ou simulada hesitação inicial das autoridades
eclesiásticas, etc. – o resto é respeitável e é com cada um. Para um ateu
militante, Fátima é uma exibição de primitivismo, um desfile de sacrifícios sem
sentido, uma exploração de crendices, uma manipulação comercial, em suma um
horror, palavra raramente aplicada ao misticismo oriental ou às cerimónias
tribais da Papuásia. E sobre Meca, por motivos óbvios, a deferência impera.
No centenário das aparições,
se quiserem sem aspas, Fátima recebe o Papa e, por cá, metade dos ateus
militantes aproveita sem surpresas para se aliviar de desprezo e chalaças.
Surpreendentemente ou não, a metade que sobra decidiu mostrar uma inédita “compreensão”
do fenómeno. Porquê? Porque o rebuliço “jornalístico” alimenta a propaganda
oficial e porque o Papa em questão ocasionalmente se deixa confundir com um
esquerdista. Pelos vistos, e eis o quarto milagre de Fátima, certos ateus
toleram a religião em prol do socialismo. Eu não tolero o socialismo a troco de
nada: há dois dias que não ligo a televisão.
Notas de rodapé
1. Após incensar Rui Moreira durante quatro anos, bastaram algumas
horas – e uma humilhação merecida – para que o PS invertesse o discurso e
passasse a considerar o autarca um perigoso antidemocrata, cuja ação maligna
reduzirá o Porto a cinzas. É sabido que a política é propícia à conveniência, à
mentira e à falta de vergonha na cara. Mas isto é espetacular.
2. O presidente Marcelo confessa-se “apaixonado pelo Papa”. Sua
Excelência, a acreditar em notícias soltas, também parece apaixonado pelos
portugueses com sucesso, pelos portugueses sem abrigo, pelas imortais vitórias
na bola, por Guterres, pelas feiras de enchidos, pelos falecidos comunistas
Baptista-Bastos e Fidel Castro, pelo recém-nascido Macron, pela nova
administração da CGD, pela comunidade islâmica indígena, pelas esposas de
Cavaco e Sampaio, pelo Benfica, por Cabo Verde e Senegal, pelo espírito
ecuménico da pátria, pelos bombeiros, pelo Teatro Aberto e, claro, pelo
governo.
O governo, ainda que de modo
mais comedido, mostra-se igualmente apaixonado por Marcelo, por Guterres, pela
“aposta” na ciência, pelos parceiros de extrema-esquerda, pelos senhores da
banca, pelas Águas do Ribatejo, pela função pública, pelo Benfica e por
qualquer indivíduo ou instituição que não lhe cause maçadas. Os “media”,
genericamente, estão apaixonados pelo Papa, por Marcelo, pelo governo, por tudo
o que seja informação “positiva” e pelos portugueses. Os portugueses estão
apaixonados pelo Papa, por Marcelo, pelo governo, por Guterres, pelo Benfica,
por Cristiano Ronaldo, pelo intérprete de uma cantiga na Eurovisão, pela fisga
de Joana Vasconcelos, pela “maior operação de segurança de sempre” e pelo que
calha.
Quase todos, em suma, estão
apaixonados por quase todos. Há imenso amor no ar. Comparado com isto, o mito
de que a orquestra do Titanic tocava uma valsa em tom menor durante o naufrágio
é brincadeira de crianças. Nós somos gente crescida, que cantará o fado e
dançará o vira mesmo depois de o país afundar. O que é que os portugueses andam
a tomar? Juízo não é, com certeza.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
13-5-2017
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-