Embora o comportamento do dr. Costa d.C.
(depois do Covid) permaneça igualzinho ao do dr. Costa a.C., o komentariado
descobriu um pretexto para elevar a glorificação a níveis desconhecidos de ridículo
Alberto Gonçalves
Em vinte anos de ofício, nunca
me importei de ser insultado. Por curiosidade antropológica, limito-me a
reparar no tipo de insultos, que em geral hesitam entre chamar-me nomes feios e
jurar espancar-me, além de outras pedagogias democráticas. Nos últimos dias,
reparei numa linha insultuosa diferente: dezenas de criaturas decidiram que não
sou patriota. Na verdade, jamais fui. Mas, por algum motivo, jamais alguém
usara essa característica para ofender a minha estrangeirada pessoa. Agora
passaram a usar. Vários cidadãos aconselharam-me a sair do país (é o “Brasil,
ame-o ou deixe-o”, em voga durante a ditadura militar), dois ou três
apelidaram-me de Miguel de Vasconcelos e um sugeriu mesmo que eu fosse julgado
por traição. O que motivou tamanha insurgência nacionalista?
Pelos vistos, o facto de eu
ter escrito umas opiniões menos abonatórias acerca das sumidades que conduzem a
guerra (o termo não é meu) contra o vírus. Quem não está com as sumidades está
a favor do vírus. Ainda que o prof. Marcelo tenha trocado as lides domésticas
por “intervenções” diárias de uma vacuidade desgastante, não se deve criticar o
senhor presidente. Ainda que a senhora da DGS e a “tutela” da Saúde sejam
exemplos raros de desorientação, dissimulação e inépcia, não se pode criticar
as estarolas em causa. Ainda que o dr. Costa atual não se distinga do dr. Costa
de sempre, um habilidoso para consumo do Terceiro Mundo, não há qualquer
hipótese de criticar o dr. Costa sem despertar a fúria de uma multidão raivosa.
Claro que parte da multidão é
constituída por avençados do PS, arregimentados para denunciar os hereges que
divergem da doutrina oficial. Porém, também me vi insultado por sujeitos
recente e genuinamente convertidos aos méritos das “autoridades”. Não admira: o
português não aprecia destoar. E se a exaltação dos “media” em volta do prof.
Marcelo tem sido discreta, que porque não haja grande interesse em promovê-lo,
quer porque a atuação de Sua Excelência embaraça até os maiores bajuladores, os
“media” não se poupam a transformar as donzelas da Saúde em heroínas sem sono e
o dr. Costa num estadista.
O caso das donzelas,
“guerreiras” que estão há mês e meio para acertar numa conta, num
esclarecimento ou numa decisão, é apenas o “branqueamento” do desnorte. O caso
do dr. Costa é fascinante. Embora o comportamento do dr. Costa D.C. (Depois do
Covid) se mantenha igualzinho ao do dr. Costa A.C., o “komentariado” descobriu
aqui um pretexto para elevar a glorificação do primeiro-ministro a níveis de
ridículo desconhecidos. Quando o dr. Costa mente sobre a capacidade de um SNS
em ruínas, o “komentariado” ignora. Quando o dr. Costa solta uma bazófia sobre
os europeus que produzem e poupam e não partilham, o “komentariado” rebenta de
entusiasmo, a louvar a “dignidade” de um mendigo grosseirão. Os fiéis mais
zelosos, com a coluna vertebral em frangalhos, asseguram que o dr. Costa “está
a trabalhar para a História” (pela minha saúdinha) e comparam-no a Churchill.
Num momento particularmente
grotesco, Churchill, perdão, o dr. Costa visitou a “casa” da “Cristina”. A ralé
é fechada em apartamentos, o dr. Costa ciranda à vontade, quer para inaugurar
“hospitais” equipados com imitações do Ikea, quer para participar em programas
de variedades. Mediante guinchos, a apresentadora, um portento com unhas roxas
e a convicção de que o Brasil possui “biliões de pessoas”, cumpriu o prometido:
uma sessão de propaganda. E o dr. Costa não desperdiçou a oportunidade. Disse
que “não se pode pôr em causa a seriedade técnica da DGS” (não se pode,
ouviram?). Disse que “devemos fazer o que diz a DGS” (que diz o que o governo
manda). Disse que “as informações são dadas com rigor” (nem comento). Disse que
é preciso “manter a pressão na mola” (a mola!). E disse não saber se
continuaremos “assim um, dois ou três meses” (ou trinta, que a partir do
primeiro já faliu tudo). Feliz, a apresentadora proclamou: “Não há governo e
povo – há uma união geral!”.
Se não há união, a ideia é que
pareça haver. Se há política, a ideia é que pareça não haver. Nas “redes
sociais” crepitam bufos, patriotas e cães de fila das “autoridades”. As
polícias obedecem e perseguem incautos. A generalidade dos “media” assume
alegremente a submissão ao dr. Costa para combater o vírus, o sr. Trump, o sr. Bolsonaro e um
ministro holandês. E os partidos em peso, com excepção de um
deputado, permitem o prolongamento e o refinamento do estado de emergência, a
trela curta numa população cujo civismo é elogiado por líderes com sarcasmo e
sem vergonha. Por regra, a população gosta de trela e adora uma boa proibição.
O dr. Costa lembrou que os portugueses “têm sido extraordinários na sua
disciplina” – por isso os trata como retardados e os prende em casa, enquanto
milhares de carros penetram a fronteira sem esboço de cautela.
Cristina, a apresentadora de
variedades, perguntou ao dr. Costa: “Enquanto povo, como é que vamos sair
daqui?” Pobres, muito pobres. E oprimidos. O caldo de pânico e abuso criado a
propósito do coronavírus está, dia a dia, a destruir uma economia já de si
frágil. As medidas para a “salvar” vão encarregar-se de eliminar o resto. No
governo e adjacências confessam-se apetites para tabelar preços, nacionalizar
empresas, produzir internamente o que antes se comprava à China e todo o rol de
alucinações que, num ápice, reduzem uma nação sofrível à miséria absoluta. E
isto sob o aplauso de quase toda a gente, tão assustada com um parasita
microscópico que despreza a ameaça de parasitas enormes.
Não é só a vida material que
não voltará ao que era: salvo um milagre, a liberdade que agora nos suprimem
não será devolvida intacta. Os parasitas farejam a fraqueza do hospedeiro, e o
medo levou-nos a ceder tudo com demasiada facilidade. O Estado, incapaz de
enfrentar uma epidemia anunciada, arrasou em semanas a dignidade de dez milhões
de alminhas, na maioria agradecidas pelo esforço. E furiosas com os que não
agradecem.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
4-4-2020
Marcação de texto: JP
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