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Ilustração: Gustavo Saldanha (?) |
Archimedes Marques
A concepção antiga de que a Polícia
tudo pode, tudo revolve, ainda hoje é vivenciada por muitas pessoas, em destaque
na classe mais pobre e com pouca cultura da nossa sociedade que sempre está
entre os moradores das periferias das cidades ou nas zonas rurais.
Nos meus 25 anos de atuação policial
me deparei com situações inusitadas que tive que sair da letra fria da Lei e
usar de bom senso para evitar males maiores, como é o presente caso que além de
tudo é muito engraçado.
Estava eu há muitos anos atrás como
titular de uma das Delegacias periféricas da chamada grande Aracaju, então responsável
pela segurança de diversas localidades, dentre as quais o povoado Oco do Pau,
hoje denominado Madre Tereza de Calcutá no município de São Cristóvão.
Do então Oco do Pau me apareceu um
cidadão, dono de um pequeno sítio, morador de uma casinha de taipa situada numa
estradinha de chão entre as brenhas do povoado, querendo registrar uma
ocorrência policial contra o seu vizinho que também vivia em condições
semelhantes de miséria, alegando que o mesmo estava mantendo relações sexuais
com a sua jumenta.
Tentei de todas as maneiras explicar e
convencer a ele que se o cidadão não estivesse fazendo aquele tipo de sexo
abertamente para configurar um possível crime de atentado violento ao pudor a
Polícia não tinha como interferir. Contudo, o queixoso não se conformou de
jeito algum e me falou que então iria matar o dito cujo de qualquer maneira,
pois só assim ele aprenderia a respeitar os animais dos outros.
No sentido de evitar a consumação da
ameaça com o provável homicídio que ele afirmou que iria cometer, então resolvi
interferir no problema mandando uma intimação para o cidadão “zoomaniaco sexual”
e, no dia marcado lá estavam os dois no meu gabinete, na minha frente, para que
eu resolvesse aquele diferente entrave.
Assim, o queixoso repetiu toda a
história que já me havia contado anteriormente e acrescentou:
-
Quero ver se ele é homem para me desmentir, porque eu peguei os dois dentro do
mato na maior “conchambrancia”. Ele lá grudado por detrás da minha jumenta
gemendo, gritando e tudo mais e, então resolvi procurar a Policia que é para eu
não ter que matar esse desnaturado, safado, tarado, sem vergonha...
O acusado que aparentava ter uns cinqüenta
anos de idade e pouca vergonha na cara não negou o fato e ainda justificou:
-
É verdade. Ele não está mentindo não, doutor, mas é a jumenta dele que é
culpada, pois quase todos os dias ela vem me procurar. Sempre estou trabalhando
tranqüilo na minha roça e a danada aparece do nada, levanta o rabo, se treme toda
e fica relinchando me chamando e aí eu vendo aquele “monumento” não me agüento
e termino satisfazendo a vontade da coitadinha...
Tive que me segurar de todo jeito para
não dar uma sonora gargalhada e colocar tudo a perder, e então firme e sério
ponderei:
-
O senhor sabe que existe a Lei de proteção aos animais e que o senhor está
maltratando a pobre da jumenta e por isso pode ser preso?...
-
Maltratando como, doutor, se ela está gostando?... Eu nunca bati nela. Às vezes
eu até tento espantar a danada, mas aí ela insiste tanto, me atenta tanto que
eu termino indo...
-
Mas mesmo assim eu entendo que o senhor está cometendo um crime por isso vou
instaurar um inquérito policial e encaminhar o caso à Justiça para que o senhor
seja processado e preso. Contudo, ainda existem alternativas para que eu não
tome essa posição. Basta que o senhor compre a jumenta dele e acabe de vez com
o problema ou então aceite fazer outro tipo de acordo.
Uma breve pausa para reflexão na sala
foi cortada pela fala do pretenso queixoso:
-
Não pretendo vender a minha jumenta porque ela é das boas e vai me fazer muita
falta, Doutor, mas se ele quiser faço outro acordo porque é melhor eu não
desgraçar a minha vida por causa desse infeliz...
-
Continue, qual seria a sua proposta?...
-
Se ele me der um saco de milho todo mês, justamente para ajudar na alimentação
da minha jumenta, a gente até deixa de ser inimigo e esquece tudo.
-
Doutor, eu também sou pobre e vivo da minha rocinha... Faço plantações... É uma
macacheirazinha aqui, um inhamezinho acolá, que eu levo no carrinho de mão para
vender na feira... No tempo de manga e caju ganho mais um pouquinho... Posso
até reservar um pedacinho de terra e plantar um milhozinho para a danada da jumenta
dele, mas um saco de milho todo o mês fica muito pesado para mim... Se ele
aceitar eu me comprometo perante o senhor a dar um saco de ração de trigo que é
mais barato de dois em dois meses...
Para convencer o queixoso falei que
realmente era uma boa proposta e que estava dentro das condições financeiras do
acusado.
-
Doutor, vou aceitar porque não estou querendo prejudicar a minha vida, nem
quero saber desse negócio de Justiça que demora muito, e além do mais ele não é
gente ruim, é até um bom vizinho, só tem esse defeito...
E então complementou descaradamente o
acusado:
-
Doutor, o senhor pode ter a certeza que eu não vou mais atrás da jumenta
dele... Quanto a isso o senhor tem a minha palavra de homem, mas se ela vier me
procurar de novo eu posso perder a cabeça e fazer safadeza com ela novamente
porque a carne é fraca... Quero que ele prenda a danada e também se comprometa
que não vai fazer nada comigo caso volte a acontecer...
Aceitas todas as condições, então
finalizei a audiência quebrando o último gelo para que os dois pudessem
descontrair e fazer as pazes, saindo satisfeitos com o acordo selado, com a
seguinte frase ao desavergonhado cidadão:
-
Se você e a jumenta resolverem se casar e o dono dela aprovar podem me procurar
que eu também posso fazer o papel de padre para abençoar essa linda união!...
Autor:
Archimedes Marques (Delegado de Policia no Estado de Sergipe. Pós-Graduado em
Gestão Estratégica de Segurança Pública pela UFS) archimedesmarques@infonet.com.br
archimedes-marques@bol.com.br
Casos anteriores:
A herança banguela (da Série “ Casos Policiais” - 2)
A malfadada troca dos anéis de couro
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