João César das Neves
Deixem-me contar-vos uma história. É um caso interessante, sobretudo pelo moral que encerra, mas também por nestes anos passar o centenário. Portugal estava com um enorme défice orçamental. Aliás lutava com ele há décadas, sempre com sucessos esparsos, pontuais e efémeros. As medidas iam-se agravando e subia a indignação popular.
Deixem-me contar-vos uma história. É um caso interessante, sobretudo pelo moral que encerra, mas também por nestes anos passar o centenário. Portugal estava com um enorme défice orçamental. Aliás lutava com ele há décadas, sempre com sucessos esparsos, pontuais e efémeros. As medidas iam-se agravando e subia a indignação popular.
O Governo, fraco, tolo,
hipócrita, carregava sobre a sociedade com medidas vexatórias, fardos
insuportáveis, sucessivos agravos. O povo acreditara quando ele dissera ter a
solução, mas afinal ainda fazia pior que os anteriores. Exagerava nos cortes,
atentava contra direitos, ultrapassava os limites da decência.
A verdade é que, com um défice
daqueles, já não havia boas soluções. Só más. Numa época antiga ainda se podia
eliminar gorduras, sacrificar supérfluos, castigar abusos, e com isso tapar o
buraco. Mas agora já não era possível. Para conseguir resolver a questão era
preciso reduzir direitos, exagerar nos cortes, ultrapassar limites. E por isso
nós protestávamos.
E como nós protestávamos! Hoje
dizem que somos um país pacato, sereno, acomodado, mas nessa altura mostrámos
ao mundo que sabíamos protestar, e protestar bem alto. Tínhamos grandes
tribunos, agitadores de génio, oradores de talento que empolgavam multidões,
incendiavam as ruas, zurziam impiedosamente os boçais governantes com a sua
retórica, em nome dos direitos agredidos, dos limites da decência. E felizmente
triunfavam sempre.
Debaixo do ataque cerrado o
Governo caía, inevitavelmente embrulhado na sua inépcia. Era preciso encontrar
um outro, que apresentasse medidas novas, que os tribunos iriam também julgar
severamente. Entretanto o défice subia mais um pouco. Porque, é bom não
esquecer, protestar não resolve nada. Descarrega os nervos, proclama verdades,
defende a justiça, mas não contribui minimamente para tratar a dificuldade.
Claro que quando as medidas são más é preciso protestar. Mas que fazer quando
só há medidas más? Que fazer quando a situação é grave, as políticas são
horríveis, mas o protesto só torna tudo pior?
Aqueles que protestavam sabiam
bem de quem era a culpa. Havia muitos inimigos a denunciar. Alguns antigos: o
reviralho, monárquicos, padres. Outros recentes: anarquistas, sabotadores, até
os boches. Sabíamos bem que a culpa era deles. Mas de facto não era. Claro que
existiam e estragavam, mas muito pouco. Nunca teriam força para criar um buraco
daqueles. O problema estava nos cidadãos honestos, nos trabalhadores patriotas,
que queriam mais do que havia. Se somássemos tudo o que as pessoas comuns
achavam ter direito, e calculássemos o total daquilo que os contribuintes
consideravam justo pagar, os valores não equilibravam. Mesmo eliminando todos
os desperdícios, abusos e roubos, o buraco permanecia. Por isso é que só havia
medidas más. Mas cada um defendia o seu interesse. Os governos, que defendiam o
país, sucediam-se, como os protestos. E o défice.
Até que aconteceu uma coisa: o
povo perdeu a paciência. O horror ao longo caos de tumultos fez com que o povo
calasse. Pura e simplesmente deixou de ligar. Vieram os militares. Mas os
militares já tinham vindo muitas vezes, sempre vencidos pelos protestos. Desta
vez o povo deixou. Os militares, como sempre, fizeram asneira, até chamarem um
professor que acertou as contas. Começou a ditadura das finanças.
Sucederam-se as medidas más,
muito más. Mas desta vez os protestos foram silenciados e o buraco acabou. É
verdade que, além da ditadura das finanças, houve também uma outra, essa geral,
que dominou o país e amordaçou as liberdades por 50 anos. Portugal viveu
décadas sem os direitos que antes não quis limitar em liberdade. Os tribunos
foram expulsos ou viveram na clandestinidade. Não se sabe se vieram a
arrepender-se dos ataques que tinham desferido, com tanto sucesso, contra os
governos frágeis que tentavam resolver o défice em liberdade.
Esta é uma história muito
instrutiva hoje para os países da Europa. Mostra como, ao defender o
importante, podemos perder o essencial.
Título e Texto: João César das Neves, Diário de Notícias, 17-9-2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-