terça-feira, 13 de maio de 2014

A vitória da grande corporação vista da Ponderosa

Helena Matos
Essa imensa e transversal corporação do “país pendurado no Estado” não só trabalha com genica e despudor em causa própria como reciclou a velha linguagem da luta de classes numa espécie de língua de pau em que a defesa dos seus interesses é sempre apresentada como a defesa do serviço público.

De repente, na Nacional 1, surge a Ponderosa. Lembram-se? Aquele que foi um ponto de paragem obrigatória na nossa infância, que tinha um motel como nos filmes americanos, piscina, máquina automática para lavar automóveis, bar e, garante-me um amigo que a cobiçou sem sucesso, uma carruagem como as do Oeste em cima da lareira. Agora com um ar decadente que a aproxima de facto daquelas cidades do velho Oeste, que de um dia para o outro viram os seus habitantes rumar para outras paragens, estava ali a Ponderosa. Só que estava praticamente vazia.



Não foi a corrida ao ouro quem desviou os forasteiros da sua porta mas sim as A's, os IP'ês, os IC'ês e todo esse emaranhado de rodovias que transformaram a velha Nacional 1 num percurso para camionistas que não querem pagar portagens e viajantes ocasionais. Poucas vezes como diante das portas fechadas dos outrora grandes restaurantes da Nacional 1, se me tornou tão óbvio que existem dois países: um, assente no Estado e que usa o seu poder nos conselhos, nos tribunais, nas ordens, nos sindicatos, nas confederações, nas fundações, nos partidos... - ou seja nas instâncias alegadamente reguladoras - para resistir à mudança ou para adiá-la o mais possível de modo a já não ser afectado por ela. O outro é aquele que não tem poder para impedir a mudança ou condicionar as opções do Estado e como tal fica sujeito às suas crises, caprichos, opções e falências.

Foto: O Sinaleiro
Se os restaurantes, oficinas e armazéns fechados ao longo da Nacional 1 fossem públicos, movimentos vários teriam avançado com acções e providências cautelares alegando a indispensabilidade do seu serviço. Juristas reputados teriam clamado contra a inconstitucionalidade subjacente à quebra das legítimas expectativas das populações que viviam ao longo daquela rodovia em manter os respectivos rendimentos, expectativas essas que naturalmente esses encerramentos comprometiam. Canções e poemas, manifestações e reportagens, manifestos e petições teriam tratado de travar, adiar e boicotar toda e qualquer alteração. E, claro, teriam tido sucesso porque essa imensa e transversal corporação do "país pendurado no Estado" não só trabalha com genica e despudor em causa própria como reciclou a velha linguagem da luta de classes numa espécie de língua de pau em que a defesa dos seus interesses é sempre apresentada como a defesa do serviço público, do bem-estar das populações, da luta contra as desigualdades e nunca mas nunca daquilo que realmente é: defesa do seu salário, do seu estatuto, dos seus garantismos e dos seus subsídios.

Nos últimos três anos vimos bispos eméritos terem visões infernais de fogueiras nos subúrbios. Observatórios observando que a guerra civil estava a chegar. Antigos presidentes da República e generais apelando ao corte de cabeças. Tivemos também coronéis a fazerem a apologia de golpes de Estado. Reformados de ouro com direito a pensão de sobrevivência a falar de fome. Sindicalistas vitalícios cantando loas à subversão. Artistas, bolseiros do berço à cova e cantores por conta das autarquias anunciando-nos o fim da Pátria porque a Pátria ia ficar privada de os ver, ouvir e ler. Aparelhos partidários invocando a solidariedade social. E todos, todos unidos numa frente contra a austeridade que, diziam, a ‘troika' impusera.

Mas não, não era da austeridade de que falavam nem foi ela - que aliás sabem indispensável e por isso dizem ser contra "esta" austeridade, como se outra existisse - que os levou a correr para os estúdios de televisão, a eles que se diziam tão cansados de mediatismo e do simplismo do discurso jornalístico! O que os sobressaltou foi, sim, o receio de que esse olhar estrangeiro caísse sobre os vícios e as manhas do País. Ou seja sobre tudo aquilo que tem garantido o poder e o prestígio da grande corporação que vive do Estado, essa corporação tão grande e tão poderosa que senta à mesma mesa desde velhos inimigos de 1975 a bispos e maçons.

Perante a ‘troika' a grande corporação teve medo. Medo de que o seu estatuto fosse abalado, de que o seu mundo de certezas tremesse como aquelas tabuletas que o vento faz oscilar ao longo da Nacional 1 em locais onde agora já não pára ninguém. Medo de que algo tivesse de mudar na fundação, no gabinete, na confederação, na empresa pública ou na empresa privada que faz de conta que é pública. Mas agora que a ‘troika' está quase a partir todos sabemos que a grande corporação não só sobreviveu à crise como se prepara para novas conquistas. Quem sabe talvez resolvam até fazer a Casa-museu Ponderosa em nome das nossas memórias de infância. Afinal já se fizeram outras bem menos justificadas e certamente com menos procura.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Económico, 13-05-2014

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