A presença da ‘troika’ em
Portugal foi o “espetáculo tão horrível” onde boa parte da classe política fez
tudo para entrar mas onde agora todos querem fazer de conta que não foram, e
donde em boa verdade nenhum deles quis sair.
Helena Matos
"Ai primas, que
espectáculo tão horrível. Eu saí logo após o fim!" - escreveu de Lisboa,
onde vira pela primeira vez um espectáculo de ‘striptease', para as suas
primas, residentes como ele numa pequena cidade alentejana, um respeitável
cidadão (e extremoso primo!) de visita à capital.
A história tal como me foi
contada e que presumo não ser absolutamente original repetindo-se com ligeiras
variantes pelo País fora - ou não se alimentasse a prodigiosa imaginação do
tempo aparentemente morto da vida provinciana com episódios similares! - dá bem
conta não apenas da duplicidade moral daquele parente dado à epistolografia mas
também da nossa. Há semanas que andamos a saudar a saída da ‘troika', a
enumerar os cortes na era da ‘troika', a lastimar os pobres dos anos da ‘troika',
a chorar o desemprego criado pela ‘troika'... Mas, tal como aconteceu com o
primo alentejano da minha história, não se perde uma linha a explicar como se
chegou ao "espectáculo tão horrível" e muito menos porque não se saiu
antes de ele acabar.
De repente, é como se em 2011
Portugal fosse um país onde tudo estava bem, à excepção de uns bancos e fundos
que já não compravam mais dívida portuguesa que por perfídia desse mesmo
sistema financeiro atingira juros de 11%. As desigualdades estavam atenuadas mesmo
que crescessem; os investigadores investigavam não interessa o quê; os
construtores construíam porque amanhã alguém pagaria; os observatórios -
felizes - observavam as suas prévias certezas; os bolseiros eram vitalícios; os
cantores cantavam em concertos sempre gratuitos que as autarquias pagavam; as
escolas eram equipadas com candeeiros de autor e as ruas com postes para
abastecer carros eléctricos que não existiam; os jovens não emigravam, partiam
à descoberta do mundo; havia sempre um espaço cultural a inaugurar mesmo que
durante meses ninguém lá entrasse; os sociólogos, politólogos, sexólogos e
demais "ólogos" animavam várias causas fracturantes que rapidamente
passavam a patamar civilizacional com programa, mesa e secretária instaladas em
vários departamentos estatais; o Tribunal Constitucional vivia discreto e
enlevado com tanta harmonia entre a realidade e a lei fundamental do País.
Tanta felicidade e tanto
crescimento alicerçado nas pessoas (e no dinheiro que se pedia emprestado e que
já não nos queriam emprestar mais mas esse é um detalhe agora irrelevante) foi
um dia interrompido porque chegou a ‘troika'. Caso a ‘troika' não tivesse vindo
- e terá vindo por quê? Ninguém a chamou? Perdeu-se em algum aeroporto e tal
como o primo da minha história em vez de ir quem sabe para a procissão de Nossa
Senhora da Saúde acabou a entrar numa determinada porta por acaso? - tudo teria
continuado no melhor dos mundos.
Assim contado parece tão
ridículo quanto a explicação do meu primo da província para o facto de ter
acabado numa sala com mulheres nuas em Lisboa. Sem entrar em maiores detalhes
posso acrescentar que obviamente as primas não só não acreditaram em tão piedosa
explicação como graças à sua indiscrição o pobre coitado foi motivo de forte
chacota. Já nós, tão urbanos e informados, andamos enlevados com esta
historieta dos anos da ‘troika', da ‘troika' tira, da ‘troika' corta e,
pasme-se, a saudar a partida da ‘troika' como uma libertação.
A presença da ‘troika' em
Portugal foi o "espectáculo tão horrível" onde boa parte da classe
política fez tudo para entrar mas onde agora todos querem fazer de conta que
não foram e donde em boa verdade nenhum deles quis sair porque, tal como para o
primo da minha história, o que se perdia era muito mais do que aquilo que se
ganhava.
Acredito que para a classe
política e administrativa que tem de se sentar à mesa com a ‘troika' a situação
seja constrangedora mas para o povo, cuja relação com o Estado é cada vez mais
de natureza fiscal, a vinda da ‘troika' possibilitou que os hospitais, as
escolas, as polícias... continuassem a funcionar e que Portugal continuasse a
ser um Estado de Direito pois ao contrário do que acredita o TC e boa parte dos
nossos políticos os direitos sociais que eles tanto dizem defender não se
garantem por decreto ou por tonitruantes declarações de vontade mas sim porque
temos dinheiro para os pagar ou, como sucedeu de emergência em 2011, porque há
quem nos empreste. E o resto são desculpas de maus pagadores que são os
melhores amigos dos credores porque nunca param de fazer dívidas.
Moral da história: com tão
fracas desculpas tal como tenho a certeza que a cada vinda à capital o primo
rumava para a porta do "espectáculo tão horrível" não duvido também
que os mesmos que agora celebram a partida da ‘troika' dentro em pouco estarão
a negociar o seu regresso e a conceber os ‘sound bytes' que maldizem a sua
presença.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Económico, 20-05-2014
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