terça-feira, 20 de maio de 2014

Sair logo após o fim

A presença da ‘troika’ em Portugal foi o “espetáculo tão horrível” onde boa parte da classe política fez tudo para entrar mas onde agora todos querem fazer de conta que não foram, e donde em boa verdade nenhum deles quis sair.
Helena Matos
"Ai primas, que espectáculo tão horrível. Eu saí logo após o fim!" - escreveu de Lisboa, onde vira pela primeira vez um espectáculo de ‘striptease', para as suas primas, residentes como ele numa pequena cidade alentejana, um respeitável cidadão (e extremoso primo!) de visita à capital.

A história tal como me foi contada e que presumo não ser absolutamente original repetindo-se com ligeiras variantes pelo País fora - ou não se alimentasse a prodigiosa imaginação do tempo aparentemente morto da vida provinciana com episódios similares! - dá bem conta não apenas da duplicidade moral daquele parente dado à epistolografia mas também da nossa. Há semanas que andamos a saudar a saída da ‘troika', a enumerar os cortes na era da ‘troika', a lastimar os pobres dos anos da ‘troika', a chorar o desemprego criado pela ‘troika'... Mas, tal como aconteceu com o primo alentejano da minha história, não se perde uma linha a explicar como se chegou ao "espectáculo tão horrível" e muito menos porque não se saiu antes de ele acabar.

De repente, é como se em 2011 Portugal fosse um país onde tudo estava bem, à excepção de uns bancos e fundos que já não compravam mais dívida portuguesa que por perfídia desse mesmo sistema financeiro atingira juros de 11%. As desigualdades estavam atenuadas mesmo que crescessem; os investigadores investigavam não interessa o quê; os construtores construíam porque amanhã alguém pagaria; os observatórios - felizes - observavam as suas prévias certezas; os bolseiros eram vitalícios; os cantores cantavam em concertos sempre gratuitos que as autarquias pagavam; as escolas eram equipadas com candeeiros de autor e as ruas com postes para abastecer carros eléctricos que não existiam; os jovens não emigravam, partiam à descoberta do mundo; havia sempre um espaço cultural a inaugurar mesmo que durante meses ninguém lá entrasse; os sociólogos, politólogos, sexólogos e demais "ólogos" animavam várias causas fracturantes que rapidamente passavam a patamar civilizacional com programa, mesa e secretária instaladas em vários departamentos estatais; o Tribunal Constitucional vivia discreto e enlevado com tanta harmonia entre a realidade e a lei fundamental do País.

Tanta felicidade e tanto crescimento alicerçado nas pessoas (e no dinheiro que se pedia emprestado e que já não nos queriam emprestar mais mas esse é um detalhe agora irrelevante) foi um dia interrompido porque chegou a ‘troika'. Caso a ‘troika' não tivesse vindo - e terá vindo por quê? Ninguém a chamou? Perdeu-se em algum aeroporto e tal como o primo da minha história em vez de ir quem sabe para a procissão de Nossa Senhora da Saúde acabou a entrar numa determinada porta por acaso? - tudo teria continuado no melhor dos mundos.

Assim contado parece tão ridículo quanto a explicação do meu primo da província para o facto de ter acabado numa sala com mulheres nuas em Lisboa. Sem entrar em maiores detalhes posso acrescentar que obviamente as primas não só não acreditaram em tão piedosa explicação como graças à sua indiscrição o pobre coitado foi motivo de forte chacota. Já nós, tão urbanos e informados, andamos enlevados com esta historieta dos anos da ‘troika', da ‘troika' tira, da ‘troika' corta e, pasme-se, a saudar a partida da ‘troika' como uma libertação.
A presença da ‘troika' em Portugal foi o "espectáculo tão horrível" onde boa parte da classe política fez tudo para entrar mas onde agora todos querem fazer de conta que não foram e donde em boa verdade nenhum deles quis sair porque, tal como para o primo da minha história, o que se perdia era muito mais do que aquilo que se ganhava.

Acredito que para a classe política e administrativa que tem de se sentar à mesa com a ‘troika' a situação seja constrangedora mas para o povo, cuja relação com o Estado é cada vez mais de natureza fiscal, a vinda da ‘troika' possibilitou que os hospitais, as escolas, as polícias... continuassem a funcionar e que Portugal continuasse a ser um Estado de Direito pois ao contrário do que acredita o TC e boa parte dos nossos políticos os direitos sociais que eles tanto dizem defender não se garantem por decreto ou por tonitruantes declarações de vontade mas sim porque temos dinheiro para os pagar ou, como sucedeu de emergência em 2011, porque há quem nos empreste. E o resto são desculpas de maus pagadores que são os melhores amigos dos credores porque nunca param de fazer dívidas.

Moral da história: com tão fracas desculpas tal como tenho a certeza que a cada vinda à capital o primo rumava para a porta do "espectáculo tão horrível" não duvido também que os mesmos que agora celebram a partida da ‘troika' dentro em pouco estarão a negociar o seu regresso e a conceber os ‘sound bytes' que maldizem a sua presença.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Económico, 20-05-2014

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