A história de Portugal é Nuno Álvares Pereira, mas
também é Leonor Teles. É Salazar e é Cunhal. É Bernardino Machado e é Carmona.
É toda a gente, os que achamos bons e os que achamos maus.
Rui Ramos
Hoje, por vontade dos deputados do PCP (Partido Comunista Português) e do BE (Bloco de Esquerda), (*) a Assembleia da República deveria ter
imposto a Portugal uma história alternativa, onde Carmona, Craveiro Lopes e
Américo Tomás nunca teriam sido presidentes da república. A ambição parlamentar
de corrigir o passado seria risível, se também não fosse contraditória. Estes
deputados representam correntes de opinião em geral muito zelosas da memória do
“fascismo”. Aparentemente, os mesmos que não nos deixam esquecer que a PIDE
existiu, não querem que se saiba que o presidente Carmona também existiu.
Reparem: a exposição de bustos presidenciais no Palácio de São Bento, causa
desta última erupção de revisionismo histórico “anti-fascista”, não representa
uma qualquer homenagem, mas apenas a sequência dos titulares da presidência da
república, tal como sucede no museu do Palácio de Belém. Porque é que os
presidentes do Estado Novo teriam de ser expurgados da memória histórica?
O Estado Novo foi uma
ditadura, sujeitou a imprensa à censura, falsificou eleições, e prendeu,
torturou, e matou oposicionistas. Não foi, porém, o único regime português que
procedeu assim. A esquerda republicana, quando no poder entre 1910 e 1926,
também censurou, também organizou fraudes eleitorais, também prendeu, também
torturou e também matou — mas ninguém se indignou com os bustos dos seus
presidentes, eleitos aliás da maneira menos democrática que se pode imaginar. É
verdade que o salazarismo praticou as suas atrocidades por mais tempo e mais
recentemente. Mas não há nenhuma força política neste parlamento que aspire a
restaurar esse regime – como nunca houve depois de 1974. A direita democrática
portuguesa jamais deixou dúvidas sobre o seu repúdio da ditadura e a sua
identificação com a democracia pluralista, ao contrário da extrema-esquerda,
sempre fiel a Estaline, a Trotsky e aos pequenos déspotas que aqui e ali
sobrevivem da bancarrota comunista. Por que razão havíamos de ter medo de um
busto de Carmona numa galeria de presidentes?
Além da nota sobre a
duplicidade de critérios, a “crise dos bustos” justifica ainda outra
observação: a história é sempre mais complexa do que indignações de bolso, como
as daqueles que ontem compararam
Carmona e Craveiro Lopes a Hitler, permitem conceber. Salazar, segundo
confessou a Franco Nogueira, nunca sentiu que Carmona, republicano e maçon,
estivesse totalmente do seu lado, e o nome do presidente andou, aliás, enrolado
nas manobras anti-salazaristas do pós-guerra. Craveiro Lopes conspirou mesmo
contra Salazar. E durante a “abrilada” de 1961, os conjurados ainda admitiram
poder contar com Tomás para alterar o rumo da governação salazarista.
Não, não estou a dizer que
foram “antifascistas”. O Estado Novo era uma ditadura, e uma ditadura
frequentemente hedionda, mas muita gente serviu o regime ou conformou-se com
ele, não porque se regozijasse com as suas brutalidades, mas porque era o que
existia e não lhe via alternativa, ou até porque esperava que evoluísse para
outro regime mais aberto e pluralista. Em 1968-1969, muitos dispuseram-se a
confiar em Marcelo Caetano, apesar da censura, da PIDE e da guerra em África,
porque se convenceram de que só ele poderia acabar com tudo isso sem precipitar
o país noutra ditadura, como a oposição não parecia capaz de garantir. E houve
quem, como Francisco Sá Carneiro, rompesse com Caetano quando compreendeu que
não seria assim. Dizer isto não é “branqueamento”. É apenas história. E quem
não percebe isso, não percebe nada, mas é verdade que os caçadores de bruxas
nunca precisaram de perceber nada. Basta-lhes atear as fogueiras.
Um país não pode ter só a
memória que convém a alguns. Um país não é um partido, nem um clube
exclusivista. A história de Portugal é Nuno Álvares Pereira, mas também é
Leonor Teles. É Salazar e é Cunhal. É Bernardino Machado e é Carmona. É toda a
gente, os que achamos bons e os que achamos maus. Nem todos somos da mesma
opinião, e nem sempre teremos a mesma opinião. Basta pensar no caso do marquês
de Pombal. Morreu com fama de ser um dos mais corruptos e sanguinários tiranos
da história de Portugal. Hoje, tem a mais imponente de todas as estátuas no
meio de Lisboa.
A propósito de Pombal, aliás,
houve em 1834 um episódio parecido com o dos bustos presidenciais. O arquitecto
que então preparou a câmara dos deputados em São Bento resolveu decorar as
paredes com nomes de figuras históricas, em letras douradas. Entre esses nomes,
pôs o de Pombal. Grande burburinho, como agora. Ainda por cima, Pombal era
antepassado do general Saldanha, então na oposição. Não houve conselho
parlamentar, mas conselho de ministros. Decidiu-se apagar o nome com uma
aguada. Mas, como conta Oliveira Martins, nos dias chuvosos, distinguia-se
perfeitamente o nome de Pombal. A história vem sempre ao de cima. Às vezes,
basta um pouco de humidade.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
2-10-2014
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