Rui Ramos
Na Grécia, a oligarquia, agora
reforçada pelo Syriza, não luta pela independência, mas pela dependência. A
culpa só será dos alemães se, mais uma vez, eles aceitarem a chantagem.
Em Atenas, não há dúvidas: a
culpa é dos alemães. Pelo que dizem ou pelo que não dizem, pelo que emprestam
ou pelo que não emprestam — pouco importa: a responsabilidade é deles e só
deles. No entanto, não foi sempre assim. Antes da conspiração alemã para
converter o continente à austeridade, houve a conspiração americana para abater
o euro. Foi há quatro anos: a culpa era então das agências de rating e dos
mercados de capitais, ambos avatares do imperialismo monetário americano,
supostamente determinado a impedir o euro de substituir o dólar nos
porta-moedas chineses. Só depois, é que a culpa casou com os alemães, acusados
de usar o poder do Euro para lavar a Europa do barroquismo latino e do bizantinismo
grego.
Não foi, porém, a Alemanha que
forçou a adesão dos países do sul à moeda única. Os alemães desconfiavam do
euro, e os seus governantes receavam a companhia da Grécia. Foram os países do
sul que se impuseram, e se os nórdicos têm culpa, é talvez a de não terem
resistido mais. Entretanto, a paixão grega pelo euro não acabou. Os gregos,
hoje, parecem não querer pagar a dívida ou ajustar a despesa ao produto
nacional. Mas continuam a querer o Euro, ou mais exactamente, o dinheiro
estável e barato que o Euro significa, e que nunca a Grécia conheceu noutro
regime. Mas querendo os benefícios, dispensam as regras. Porque é que julgam
que isso será possível?
Essencialmente, porque a
oligarquia grega convenceu-se de que o Euro é um projecto político, e não
monetário ou económico. A base dessa crença está na história da origem do Euro:
primeiro, criou-se a moeda, e depois esperou-se que as economias entrassem em
sintonia. Ou seja, a prioridade parecia ser lançar as fundações de uma Europa
politicamente unida, mais do que definir uma zona monetária coerente. O
carácter político do Euro provava-se ainda pela admissão da própria Grécia, que
todos sabiam não cumprir os chamados “critérios de Maastricht”. Se a
Grécia, sem cumprir, entrou, porque é que não haveria de ficar, mesmo não
cumprindo?
Há quem, neste ponto, note que
os gregos teriam razão no sentido em que o Euro, enquanto moeda forte, mais
adequada à economia alemã do que à grega, seria a origem dos seus problemas. De
certa forma, mereceriam ser indemnizados por isso. Não é completamente
verdade. O Euro não é a razão das dificuldades do sul europeu. A causa da crise
da Europa meridional está na expectativa de sociedades que se lançaram na
globalização à procura de investimento e de crescimento, mas que não estiveram
dispostas a adaptar-se para competir, e por isso não atraíram investimento nem
geraram crescimento.
A economia portuguesa é um
exemplo: de facto, nunca recuperou do choque da abertura dos mercados e do
alargamento da União Europeia desde a década de 1990. Relutante em fazer
reformas, a oligarquia política portuguesa abusou do crédito barato gerado pelo
euro, e incentivou cidadãos e empresas a fazerem o mesmo, com a esperança de
que as despesas fossem reprodutivas. Não eram: eram apenas despesas. A
história da Grécia não é muito diferente.
A questão não é de contrastes
“culturais” entre o germanismo ou protestantismo do norte, e o latinismos ou
catolicismo do sul (ou bizantinismo e ortodoxia, no caso grego), que seria
necessário ajudar a coexistir dentro do Euro. Primeiro, ninguém alguma vez
demonstrou que o défice e a dívida tivessem a ver especificamente com a
latinidade ou o catolicismo. Segundo, é verdade que nas décadas anteriores à
integração monetária, o inflacionismo – isto é, o abuso da moeda — vigorou no
sul da Europa e na Irlanda, como demostrou Vítor Bento no seu livro Euro Forte, Euro Fraco. Mas ao contrário
de Vítor Bento, não creio que seja necessário reconhecer profundidades
antropológicas a percursos e situações circunstanciais.
Como nota o próprio Vítor
Bento, a Irlanda, sem deixar de ser a Irlanda, ultrapassou a “cultura”
inflaccionista. E Portugal até tem, ao contrário do que é costume repetir-se,
uma história de esforços de equilíbrio: em regimes autoritários, como no caso
de Afonso Costa em 1913 ou de Salazar em 1928, mas também em democracia: depois
de 1974, o actual regime foi capaz de executar programas de ajustamento em
1978, em 1983 e em 2011, sempre com resultado, prova de que a sociedade
portuguesa sabe adaptar-se. A resistência às reformas e ao rigor orçamental não
é “cultural”, mas ideológica e sobretudo motivada pela percepção de uma
oportunidade política.
Os alemães, de resto, também
não colaboram, gastando como tantos lhe pedem, por qualquer moralismo luterano.
É que a Alemanha não é um milagre: é também um esforço. No século XX, registou
alguns dos maiores desregramentos financeiros do mundo, como a célebre “morte
do dinheiro” na década de 1920. Ainda há apenas quinze anos, era um dos “homens
doentes” da Europa. Tem uma sociedade tão envelhecida como a nossa, uma opinião
tão dividida como a nossa, e um Estado social igualmente sob pressão como o
nosso. Fez, entretanto, ajustamentos e adaptações que funcionaram, mas cujos
efeitos podem ter-se esgotado entretanto. É natural que os seus líderes e
cidadãos receiem o compromisso de sustentar regimes europeus inviáveis. Não é
preciso invocar a “austeridade” luterana para compreender os alemães.
A este respeito, a integração
europeia, e sobretudo a união monetária, pode ter sido involuntariamente
perversa. Em teoria, deveria ter ajudado as oligarquias do sul a adaptar
gradualmente os seus países à globalização. Em vez disso, a ideia de que o
sentido do Euro é sobretudo político gerou nessas oligarquias a expectativa de
que seria possível forçar o norte a financiar a relutância em mudar no sul. Se
a prioridade é construir uma Europa unida, para além de toda a racionalidade
económica, então faz sentido apostar em que, a fim de evitar a desagregação da
zona Euro, toda a gente fará o que for preciso, inclusive pagar os défices gregos.
É o que todos, agora,
suspeitam que significa o Syriza: não um qualquer chavismo balcânico,
para que falta aliás o petróleo, mas apenas uma nova maneira de pressionar a
Europa do norte. Na Grécia, a oligarquia, agora reforçada pelo Syriza, não luta
pela independência, mas pela dependência. A culpa só será dos alemães se, mais
uma vez, eles aceitarem a chantagem.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
7-1-2015
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-