Rui Ramos
No Brasil, importa menos o que aconteceu,
do que o modo como aconteceu. Dilma não foi derrubada na rua, por soldados ou
manifestantes. Caiu onde devia, no Senado. É a diferença que faz a democracia.
Como já se esperava, a
presidente do Brasil foi deposta pelo senado. Toda a gente no Brasil tem
opinião, mas parece que fora do Brasil também. O que aconteceu? Não, não foi o
golpe de Estado de uma classe reaccionária contra um governo do povo e das
minorias. Mas também não foi a rejeição pela parte sã do país de um governo
demagógico e corrupto. Foi outra coisa: um realinhamento de forças nas câmaras
legislativas, suscitado pela maior recessão económica das últimas décadas e
pelo maior escândalo de corrupção de sempre. Que diz isso sobre a democracia no
Brasil?
O que importa neste caso não é
o que aconteceu, mas o modo como aconteceu. Dilma Rousseff não foi derrubada na
rua, por soldados ou por manifestantes. Caiu onde devia cair, nas câmaras
legislativas, num processo que o Supremo Tribunal Federal julgou regular. Para
alguns dos seus fãs, dentro e fora do Brasil, isso parece não fazer diferença.
Mas faz toda a diferença. As formalidades foram respeitadas e Dilma pôde
defender-se das acusações. É assim uma democracia, embora possamos não gostar
do resultado.
Há quem diga: as acusações
contra Dilma não deviam bastar para depor um presidente. Mas bastaram. O
sistema brasileiro é assim. O presidente da república, eleito por sufrágio
universal, é o chefe do poder executivo, mas precisa de uma maioria no
congresso para governar. Dilma perdeu essa maioria, e formou-se uma maioria
contrária, que invocou as “pedaladas fiscais” para a destituir. Se fosse na Europa,
dir-se-ia que Dilma caiu por falta de apoio no parlamento (61 votos contra 21
no Senado).
Não é a primeira vez que isso
acontece. Em 1992, Fernando Collor de Melo tombou desse modo, como aliás ele próprio lembrou há dias. O PT de Dilma fez parte
da coligação parlamentar que demitiu Collor, e tentou depois fazer o mesmo aos
presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. É assim que, entre
eleições presidenciais, mudam os governos no Brasil. Só agora é que o PT
descobriu que era "golpe". Mas Dilma não foi eleita directamente por uma
maioria? Foi, mas essa maioria era formada por partidos que agora estão contra
ela, como o PMDB. Já não existe.
O congresso brasileiro é um
xadrez de partidos relativamente pequenos em termos europeus. O PT teve apenas
14% dos votos na última eleição da Câmara dos Deputados. Com Lula da Silva,
conseguiu compor coligações que lhe deram o poder durante 13 anos, como pólo
alternativo às alianças encabeçadas pelo PSDB de Fernando Henrique Cardoso. É
curiosa, por isso, a acusação de que os novos governantes são “misóginos”, “homofóbicos” e “racistas”, porque foi com
esses mesmos misóginos, homofóbicos e racistas que o PT governou durante 13
anos.
A maioria de Lula viveu do
boom das matérias primas, mas também, segundo a Operação Lava Jato, da
corrupção com que os seus chefes compraram aliados e cúmplices. Não resistiu,
assim, ao fim do boom e à desmontagem judicial da corrupção. Este ano, o único
sentido do governo de Dilma já só parecia ser o de proteger os dirigentes do PT
inquiridos pela justiça, a começar por Lula.
As democracias não são os
regimes onde nunca há governantes corruptos ou abusadores: são aqueles onde as
instituições podem sancionar esses governantes, como aconteceu a Richard Nixon
nos EUA, em 1974. As democracias também não são os regimes que nunca
proporcionam motivos de indignação, mas aqueles onde o protesto pode e deve ser
mantido dentro da legalidade. Para alguns conservadores americanos, como Patrick Buchanan, Watergate foi um “golpe de Estado”. Mas
não vieram para “a rua”.
Tudo depende agora da
liderança do PT. Vai usar este caso para tentar deslegitimar o regime entre os
seus activistas e eleitores? É essa, nesse momento, a dúvida sobre a democracia
no Brasil
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
2-9-2016
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não aceitamos/não publicamos comentários anônimos.
Se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-