Vítor Bento
Num tempo dominado pelas emoções,
acirradas por activistas desenfreados e de desvio totalitário, é reconfortante
ouvir a consciência da mais antiga democracia funcional contrapor-se à deriva
populista
A recente decisão do Tribunal
Superior britânico, sentenciando que o Brexit só pode ser accionado por uma
deliberação do Parlamento, apesar do resultado do referendo (a que o tribunal
não reconhece valor político-jurídico), tem consequências que transcendem a
matéria em causa.
É certo que o assunto ainda
não está encerrado, porque o governo já anunciou que irá recorrer da sentença.
Mas, se tiver de apostar, aposto que esta sentença será confirmada (sob pena de
se operar uma profunda revisão constitucional, à margem do Parlamento).
O que está em causa é um
confronto entre a democracia directa – sem tradição política no mundo
anglo-saxónico – e a democracia representativa – âncora da tradição democrática
britânica. Foi, aliás, isso que escrevi para um grupo de amigos logo a seguir
ao referendo, questionando se, quando chamados a intervir, os deputados iriam
decidir pela sua consciência – caso em que o Brexit não aconteceria, porque a
maioria dos deputados se revelara ser contra o mesmo – ou seguir o resultado,
não vinculativo, da consulta popular.
É por isso surpreendente que,
sem qualquer base constitucional para o efeito, todo o establishment político
e mediático tenha assumido que o referendo – sem poder vinculativo – decidira a
questão do Brexit. Talvez os ventos populistas que actualmente sopram sobre a
política mundial ajudem a explicar o caminho seguido. Mas o que é certo é o
resultado foi dado como facto consumado, o que, apesar da dúvida acima
referida, acabei por também acatar e até escrevi, aqui,
sobre as suas consequências.
Ora bem, o que a sentença do
tribunal veio agora esclarecer é que a decisão sobre o Brexit terá que
respeitar o “due process” de uma democracia representativa e que, para poder
valer, terá que ser tomada pelos legítimos representantes do povo, ou seja, o
Parlamento. É por isso particularmente interessante a citação que a sentença faz
do que em 1915 escreveu um dos mais reputados constitucionalistas ingleses: “os
juízes não sabem nada sobre a vontade popular, excepto quando essa vontade é
expressa numa decisão do Parlamento, e nunca aceitarão que a validade de uma
lei seja questionada com a invocação de ter sido aprovada ou mantida em
oposição à vontade dos eleitores”. (Aliás, vale a pena ler toda a
sentença).
Por conseguinte, e a menos
que, improvavelmente, a sentença venha a ser revogada, o confronto entre a
democracia directa – representada pelo referendo – e a democracia
representativa – representada pelo processo deliberativo do Parlamento – irá
mesmo ter lugar. E sabendo-se que a maioria dos deputados eram contra o Brexit,
vai ser interessante ver se, nesse confronto, vão ser fiéis às suas convicções,
ou se vão submeter-se ao resultado do referendo.
Os deputados são eleitos numa
base individual – isto é, em circunscrições de um deputado –, ainda que sob um
programa partidário, o que lhes confere um elevado grau de autonomia e legitimidade
própria. Por outro lado, os programas dos principais partidos representados no
Parlamento não contemplam o Brexit, pelo que não será fácil impor uma espécie
de disciplina de voto com base programática. Por outro lado ainda, e contra o
que muitos têm argumentado, os deputados não têm nenhuma obrigação jurídica,
ética ou política de respeitar o voto do referendo. Que, além do mais, não tem
protecção constitucional.
A discricionariedade de um
deputado só é limitada pela sua consciência e pelo conteúdo explícito da
plataforma com que eventualmente se tenha proposto à eleição. Não tem mais
nenhuma obrigação – moral ou política –, nem tem que se subordinar a eventuais
manifestações de vontade do seu eleitorado, subsequentes à sua eleição. A
aderência, ou não, a estas manifestações poderá ter influência na sua eventual
reeleição, mas não constitui uma obrigação retroactiva.
A decisão judicial, a
confirmar-se, deixa, pois, formalmente tudo em aberto, no que se refere ao
Brexit. E, reminiscente da saga “Regresso ao Futuro”, este pode nunca ter sido
aprovado.
O que acho destacável neste
episódio não é o que vier a ser o seu resultado final, mesmo que este seja a
recusa do Brexit (se os deputados votarem pelas suas convicções). Tanto mais
que penso, como aqui escrevi,
que o Brexit está mais alinhado com os interesses estratégicos do Reino Unido,
dado o caminho da integração europeia, e que causará mais problemas à UE do que
ao RU.
O que acho digno de registo e
exaltação é que alguém se tenha sentido obrigado a lembrar que o R.U. é uma
democracia representativa; que esta forma democrática, assente em instituições
equilibrantes, com freios e contrapesos, é a que melhor resiste às ondas
emocionais e melhor compatibiliza a democracia com a liberdade e a justiça; e
que o respeito pelo devido processo deliberatório é fundamental para o seu bom
funcionamento. Pois que, como escreveu Norberto Bobbio, “demasiada
democracia pode matar a democracia”.
Num tempo cada vez mais
dominado pelas emoções, acirradas por activistas desenfreados e de fácil desvio
totalitário, é reconfortante ouvir a consciência da mais antiga democracia
funcional contrapor-se à deriva populista.
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