José Manuel Fernandes
A novela das declarações de rendimentos
dos gestores da CGD pode acabar mal, mas há já uma lição a tirar: a palavra
dada nada vale para estes ministros, que manhosamente só desejam salvar a sua
pele.
Chega. Há uma altura em que
deixa de haver paciência para a duplicidade e a manha. Pior: há um momento em
que a gravidade das consequências dessa duplicidade e dessa manha não podem
deixar de ser encaradas de frente.
Escrevo sobre o que se está a
passar na Caixa Geral de Depósitos. Não tenho nenhuma dúvida que a contratação
de uma nova equipa de gestão exigia que esta não ficasse limitada pelas regras
– com o seu quê de populistas – do estatuto do gestor público no que se refere
à sua remuneração. Deviam apenas estar limitadas pelas regras do mercado
(quanto temos de pagar para ter os gestores que queremos contratar?) e pelas
regras do bom senso (qual o limite para esses valores serem considerados
razoáveis, nomeadamente face ao que esses gestores ganhavam antes?).
Mas se digo isto sobre as
remunerações, não digo o mesmo sobre as regras de transparência. A Caixa Geral
de Depósitos não é banco como os outros – se fosse, o melhor era privatizá-la.
Sendo pública, os seus gestores não podem beneficiar de um secretismo que não é
permitido a um presidente de uma minúscula junta de freguesia ou ao gestor de
uma pequena empresa participada. Em suma: têm de entregar as suas declarações
no Tribunal Constitucional, onde elas estarão disponíveis como estão a de todos
os restantes. Isto é, sujeitas a escrutínio público, e não tenhamos dúvida que
ele acontecerá no exacto momento em que tais declarações aterrarem (se
aterrarem) no Palácio Ratton. Não é voyeurismo, é política e é liberdade de
imprensa. Não é defeito português, aconteceria o mesmo em que qualquer
democracia em que a mesma regra existisse. Provavelmente até poderiam ser
consultadas online.
É desagradável para gestores
que toda a vida estiveram protegidos deste nível de exposição pública? É. Mas
isso não chega para que se queira mudar regras do jogo que são as mesmas há
mais de 30 anos. Ou para se permitir que alguém a quem se vai entregar cinco
mil milhões de euros para gerir o faça deixando no ar a sensação de que tem
algo a esconder, algo de menos próprio ou conveniente para se estar à frente do
banco do Estado. Que acções possuem de outros bancos, nomeadamente do BPI? Que
contas detêm? E são todas em Portugal? Eis temas sensíveis que nada têm a ver
com saber de que casas, carros ou iates são proprietários.
O impasse em que estamos não é
culpa nem de António Domingues, nem da equipa que ele escolheu: é
responsabilidade de quem aceitou as suas condições sabendo que, para as
aceitar, teria de mudar a lei e as regras do jogo. E quem as aceitou tem nome:
Mário Centeno (eventualmente logo em Março, como se noticiava esta segunda-feira) e António Costa (pelo menos desde Junho, de acordo com uma notícia deste
sábado).
Centeno e Costa – este último,
ao que parece, saindo de propósito de uma reunião de Conselho de Ministros –
disseram ao presidente da CGD que poderia manter secreto o seu património, tal
como os membros da sua equipa. Quando fizeram a lei, fizeram-na deliberadamente
com essa intenção. Recordemos que, quando o problema foi levantado, o ministro das Finanças foi célere a declarar que não havia problema
nenhum – “o acionista Estado tem conhecimento perfeito da matéria que está em
cima da mesa, o supervisor também”, como se isso resolvesse alguma coisa ou
tornasse inútil a lei de 1983 ou os princípios de transparência na vida pública
– e que uma fonte do seu Ministério foi ainda mais longe ao declarar,
taxativamente, que a omissão do escrutínio público na lei feita especialmente
para os gestores da Caixa não era um lapso.
A partir deste momento a
posição do Governo e do PS passou a ser ora dúplice, ora sonsa, ora abertamente
hipócrita. Primeiro foi Carlos César a dizer que os gestores tinham de entregar mesmo as declarações, a seguir a
empurrar o problema para o Tribunal Constitucional, depois a concordar com Marcelo Rebelo de Sousa, ou seja a concordar que não só as declarações devem ser
entregues, como que a Assembleia pode clarificar a lei se assim o entender.
Depois foi Costa a esgueirar-se como podia, ora empurrando para o
Constitucional (em nome da “separação de poderes”, como se não tivesse sido ele
a propor a alteração legal que está na base da controvérsia), ora recusando-se
a responder a qualquer pergunta, no Parlamento ou de jornalistas. Finalmente
esta segunda-feira ouvimos Pedro
Nuno Santos declarar que os gestores da Caixa “têm de apresentar a declaração
de rendimentos” porque é isso que diz a lei de 1983, tirando formalmente o
tapete a Mário Centeno, para quem remete, cinicamente, os “detalhes” do que foi
combinado com a equipa de António Domingues.
Isto não é apenas uma
trapalhada – isto é um modus operandi típico de quem fez uma
combinação que não devia ter feito, de quem aprovou uma lei que não devia ter aprovado,
de quem procura atirar a responsabilidade (primeiro) e as culpas (depois) para
cima de outros e, sobretudo, de quem não quer definir-se e só procura um bode
expiatório. A comandar este exercício de suprema hipocrisia política está
naturalmente o primeiro-ministro, por certo convencido que a arte de bem se
esgueirar como uma enguia é a suprema arte do bom político.
Tudo pode acabar mal, e o
supremo cinismo é nem sequer assumir com frontalidade que se prometeu o que não
se podia ter prometido. Mas se acabar mal, e se esta administração da Caixa
cair, o terreno está desbravado para serem eles os maus da fita, os que não
quiseram cumprir a lei, os que se julgam acima do comum dos mortais. Nessa
altura António Domingues terá toda a razão para se sentir enganado, mas
sobretudo perceberá que pouco proveito terá em ter colocado as suas condições
em devido tempo e ter moralmente razão. Perceberá como vale pouco a palavra
dada em política – em especial a palavra de certos políticos – e que engolir
sapos faz parte do menu de quem vai para uma Caixa Geral de Depósitos.
Por fim não deixa de ser
irónico que o Governo tenha querido gerir a Caixa com o mesmo tipo de regras de
um banco privado – e com o mesmo tipo de agressividade na sua reestruturação,
como a seu tempo se verá, se bem que com tudo bem almofadado pelo dinheiro dos
contribuintes – e encha a boca com as enormes “vantagens” de ter um banco
público. Como agora se está a ver, não se pode ter sol da eira e chuva no nabal
ao mesmo tempo.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
7-11-2016
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