Sérgio Barreto Costa
Habituados que estamos, historicamente, a que a verdade domine a política e caracterize os políticos, é natural esta surpresa generalizada diante do mundo novo das fake news. É certo que os investigadores nos falam, a propósito da Batalha de Kadesh, de uma gigantesca campanha de mentiras orquestrada a partir da cúpula do poder imperial de Ramsés II (obrigado, Yul Brynner): o faraó egípcio, nesse célebre episódio, mandou inscrever nas pedras das mais imponentes construções da época o relato da sua gloriosa e retumbante vitória contra os Hititas, algo que seria bastante justo caso tivesse de facto vencido, o que não aconteceu. Mas isso foi no séc. XIII antes de Cristo, não sendo por isso minimamente representativo da honestidade que os políticos cultivaram durante os 3 290 anos que se interpuseram entre as aldrabices de Ramsés o Grande e as aldrabices de Donald Trump.
Embora haja neste momento um
enorme pessimismo sobre a eficácia do combate às notícias falsas, eu confio na
resolução do problema. E fui invadido por essa confiança quando li o texto que
o realizador João Salaviza escreveu no jornal Público, relativo às
presidenciais brasileiras, no qual lamentava a propagação de mentiras durante a
campanha eleitoral. Quando um especialista em difundir patranhas se vira contra
a difusão de patranhas, só podemos ter esperança de que todos os outros façam o
mesmo e o fenômeno se extinga.
Recordemos, para
contextualizar a conversão do cineasta, um episódio relativamente recente: há
cerca de meio ano, comentando o filme que rodou no Aleixo, o autor desabafou
sobre o pesadelo que representa ainda hoje a sinistra comemoração de Rui Rio,
que se pôs a brindar com champanhe durante a demolição das torres do bairro
portuense. Salaviza olha para essas imagens e considera-as tenebrosas e
traumáticas, o que seria uma opinião perfeitamente legítima não fosse o caso de
elas não existirem! Sabemos bem que os artistas têm uma sensibilidade especial
para analisar os acontecimentos, mas os dotes artísticos de Salaviza são tão
extraordinários que essa sensibilidade se manifesta até na análise do que nunca
aconteceu. Se fosse um vulgar cidadão a imaginar coisas destas, teríamos de lhe
dar medicação; sendo um realizador de cinema, merece que lhe seja dada a Palma
de Ouro.
O meu otimismo é ainda
reforçado pelo circuito que a ficção de Salaviza percorreu à época e as
mudanças que entretanto ocorreram: o desabafo do cineasta foi divulgado pelo
Diário de Notícias, que se transformou desde essa altura no órgão oficial do
combate à mentira, e foi amplamente multiplicado pelo Bloco de Esquerda,
partido que encabeça atualmente a frente política contras as fake news.
O deputado José Soeiro, por exemplo, chamou canalha a Rui Rio por causa do
champanhe e disse que não era capaz de esquecer aquelas imagens. A minha
sugestão, para ver se ainda vai a tempo de passar por artista, é que José
Soeiro pegue rapidamente numa lata de spray e faça um rabisco
qualquer numa parede da cidade. Se com essa manobra conseguir escapar aos
psicofármacos, merece, sem dúvida, um grande brinde.
Título, Imagem e Texto: Sérgio Barreto Costa, Blasfémias,
12-11-2018
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