Alberto Gonçalves
À semelhança dos cachorros da lenda os
profissionais do comentário ouvem as campainhas e reagem em conformidade, no
caso em auxílio do dono que ameaçava repetir o trágico resultado eleitoral de
Seguro
Foi a pior decisão desde que a
Decca rejeitou os Beatles. Ou desde que os fundadores do Burundi olharam em
redor e anunciaram que sim, senhor, aquilo daria uma nação próspera e
impecável. Escolhi mal a semana de férias e vi-me privado de elogiar a
interpretação do dr. Costa [foto] na já célebre rábula da “demissão”. Felizmente, não
faltou quem elogiasse. Nas televisões, nas rádios, na “net” e, dizem-me, nos
jornais tradicionais, cerca de 97% dos comentadores nativos souberam homenagear
devidamente o grande estadista que nos tocou em sorte. E que sorte! Segundo a
opinião geral, o dr. Costa teve uma prestação brilhante. O dr. Costa é um estrategista
raro. O dr. Costa frequenta a vizinhança do génio absoluto. De brinde,
apurou-se que, em parelha com a risonha figura das Finanças, o dr. Costa é um
modelo de escrúpulos contabilísticos.
Por sorte, o Observador é um
espaço de liberdade que me permite, mesmo com imperdoável atraso, juntar a
minha modesta voz a vozes respeitadíssimas do calibre de um Marques Mendes ou
de dois José Miguel Júdice. Por azar, não sou capaz. A escassa atenção que
dediquei ao assunto sugeriu-me que em lugares civilizados o assunto nunca
passaria das secções dedicadas ao insólito, ao lado de ameixas siamesas e da
velhinha que desceu nove andares pendurada em varandas: “Governante com 9 anos
de idade mental presume que os eleitores têm 8”. Naturalmente, tratou-se apenas
de uma golpada baixa, tosca e digna do dr. Costa, que, apavorado com as perspectivas
para as “europeias” e munido do domínio da língua que Deus lhe deu e os
professores (lá está) não lhe deram, convocou os “media” para fingir, muito
mal, uma birra.
A patranha era a de que, em
nome do rigor orçamental, o governo apresentaria a demissão se se visse
obrigado a largar 800 milhões – ou 600, ou 300, que a ciência dos números é
fluída – para “descongelar” professores. O dr. Costa, o exato dr. Costa que não
saiu após a derrota de 2015, dos incêndios (exceto para uma praia espanhola),
de Tancos, da rede de nomeações familiares e, consta, na juventude se viu
arrastado de uma associação estudantil que perdera nas urnas, iria abdicar de
mandar nisto por causa de 800 milhões fatalmente roubados ao contribuinte? É
menos do que, ainda há pouco, o Estado prometeu “investir” em
“acessibilidades”, “passes” e transportes, incluindo bicicletas. É menos do que
o custo estimado do novo aeroporto do Montijo. É menos do que o que se despeja
com regularidade na banca (cujos senhores, com divertido descaramento, se
apressaram a louvar a “estabilidade política” logo que os efeitos da rábula se
dissiparam). E é mais, bastante mais, do que o cidadão com dois neurónios devia
estar disposto a engolir.
Estranhamente, ou, para quem
conhece as tradições locais, nem por isso, os profissionais do comentário
engolem o que calha. É possível que alguns só possuam um neurónio. Os restantes
talvez tenham colocado todos os neurônios em sabática, a fim de disponibilizar
a totalidade do córtex para a exaltação do Supremo Líder. Não importa perceber
como é que essa gente consegue dormir à noite. A pergunta adequada é: como é
que permanecem acordados de dia? Não se envergonham do papel que desempenham à
vista desarmada? Não sentem um pingo de embaraço? Sequer um nozinho na garganta?
E as respostas são não, nada e nem por sombras. À semelhança dos cachorros da
lenda, os profissionais do comentário ouvem as campainhas e reagem em
conformidade, no caso em auxílio do dono que ameaça repetir o trágico resultado
eleitoral do dr. Seguro, que Deus guarde. A conveniência, o estipêndio direto e
a mera rotina condicionam de facto os reflexos. A natureza é fascinante.
E os profissionais do
comentário não se limitaram a canonizar o dr. Costa, um profissional da
irresponsabilidade que, à imagem de certo “irrevogável”, usa o poder que lhe
caiu em cima para artimanhas e chantagens reles. Dado que lhes falta em
vergonha o que lhes sobra em método, lançaram-se em simultâneo na excomunhão do
dr. Rio, acarinhado diariamente enquanto o PSD afocinhava nas sondagens. O dr.
Rio é um desastre desde a primeira hora? É. Por isso convinha promovê-lo a
título de “moderado”, por oposição (real) a Pedro Passos Coelho e para oposição
(nula) ao PS. Assim que os inúmeros parentes do sr. César, os enxovalhos da economia
e um candidato inacreditável sugeriram estragar a festa de 26 de maio, o dr.
Rio tornou-se o protagonista da chacota coletiva.
Diga-se que o dr. Rio, que
junto com o CDS acabou por ceder à miserável encenação do dr. Costa, merece a
chacota. Diga-se que o prof. Marcelo, que aproveitou a “crise” para sumir
durante uma semana, merece o descanso. Diga-se que os professores, que
confiaram num sindicato movido por interesses alheios aos assalariados que
representa, merecem a desfeita. Diga-se que os portugueses, cuja maioria parece
apoiar o “ultimato” do dr. Costa, merecem o dr. Costa. E diga-se que os
profissionais do comentário, que alimentaram a anedótica “demissão”, mereciam
ser demitidos.
Nota de rodapé
O parlamento aprovou por
unanimidade o convite a uma criança sueca preocupada com as alterações
climáticas. Há meses, a criança celebrizou-se ao declarar greve à escola para
combater o capitalismo, a suposta causa das referidas alterações e a causa
comprovada dos confortos de que a criança usufrui. A criança inspirou milhares
de crianças em todo o mundo a fazerem greve à escola, uma impossibilidade
logística: à escola, faz-se gazeta. A criança, que é autista, chegará a
Portugal de comboio para não poluir muito o ambiente. Em seguida, a criança
discursará na AR sobre os males que a consomem e a urgência de um mundo melhor.
Até porque pior é impossível.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
11-5-2019
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