O português médio padece da exata
irresponsabilidade das “elites” (desculpem) que o pastoreiam. O português médio
não se recomenda, donde os portugueses que nele mandam serem tão pouco
recomendáveis.
Alberto Gonçalves
O BE [Bloco de Esquerda] esquece-se
de ter votado o orçamento que financiava o Novo Banco e questiona o
primeiro-ministro. O primeiro-ministro finge que não sabe do financiamento ao
Novo Banco, mente ao parlamento e entala o ministro das Finanças. O ministro
das Finanças estrebucha e com escassa subtileza chama mentiroso ao
primeiro-ministro. O primeiro-ministro conspira um acordo e apoia a
recandidatura do Presidente da República. O Presidente da República, por troca direta,
exalta o primeiro-ministro e enxovalha o ministro das Finanças. O ministro das
Finanças recebe um pedido de desculpas telefónico do Presidente da República. O
líder da oposição (estou a brincar) obedece ao líder do governo e pede a
demissão do ministro das Finanças. O ministro das Finanças, com o ar apalermado
que Deus lhe deu, aceita tudo na condição de o projetarem para um posto inútil
e bem remunerado. O povo aceita tudo sem condições e legitima em sondagens esta
cáfila.
Não vou exceder-me nos
comentários de semelhante indecência. O episódio do Novo Banco é apenas a
enésima demonstração da falta de escrúpulos das “personalidades” em causa. Isto
é gente sem vestígio de dignidade ou valor. Isto não é a sujidade intrínseca à
política: é imundície pura, da que se encontra nas franjas baixas da
humanidade. Isto aproxima-se do pior da humanidade, em matéria de descaramento
e cinismo. E a verdadeira tragédia é não nos podermos queixar.
“Que fizeram os portugueses
para merecer elites tão lastimáveis?” é uma pergunta que devia ser interdita –
porque a resposta define uma natureza. E dói. Os portugueses limitam-se a
existir, o resto vem por acréscimo: é, como se diz em língua de trapos, uma
decorrência inevitável. Ao contrário dos portugueses, as elites não existem. Os
Costas, os Centenos, os Marcelos, as Catarinas, os Rios e os Ferros que rebolam
por aí, anafados e boçais, não seriam elitistas nem sequer no pátio de
Alcatraz. São habilidosos com pouca habilidade e nenhuma virtude. São demagogos
primários, capazes do que calha para safarem o próprio lombo. São, e eis a
desgraça, iguaizinhos à maioria dos portugueses, dos quais se distinguem apenas
pelos privilégios. E a maioria não lamenta os privilégios: inveja-os. O
português médio não sente vergonha dos Costas, dos Centenos, dos Marcelos e
tal. O português médio gostaria de ocupar o lugar deles. O português médio
sonha “subir” até ao ponto em que pudesse viver despreocupadamente a explorar,
a humilhar e a gozar os portugueses que ficariam para trás. O português médio
padece da exata irresponsabilidade das “elites” (desculpem) que o pastoreiam. O
português médio não é levado a sério na medida em que não se leva a sério. O
português médio não se recomenda, donde os portugueses que nele mandam serem
tão pouco recomendáveis.
Se necessário fosse, e não
era, a história da Covid exibiu a essência deste povo. Há qualquer coisa
doentia em criaturas paralisadas pelo medo e pela propaganda. E que desejam
impedir os outros de sair e trabalhar, exceto se os outros lhes asseguram a
disponibilidade de supermercados, restaurantes, farmácias etc. E que aspiram a
permanecer enclausurados, na ilusão de que o emprego e o salário dependem de
arranjo divino e não da reles economia. E que acatam sem uma dúvida as
“recomendações” e os açaimos dessa trupe circense intitulada DGS. Há qualquer
coisa doentia nessas criaturas, por acaso minhas conterrâneas. A infantilidade
é o vírus português.
Em países civilizados, há
protestos na rua contra a continuação da quarentena ou contra as regras
posteriores a uma quarentena que já se percebeu excessiva e desastrosa. Na
selva lusitana, boa parte dos nativos protesta na sala de estar contra o
“desconfinamento” dito “prematuro”. Se os deixassem, e talvez deixem, ficariam
por lá durante meses ou anos, a carregar no “pause” da Netflix para vir à
janela condenar o vizinho que passeia, para cúmulo sem calções, cão ou máscara
“social”. A máscara é “social”. O distanciamento (significa “distância”) é
“social”. O isolamento é “social”. A novilíngua insiste no “social” para criar
um simulacro de sociedade. O que temos aqui não é uma sociedade, mas uma rede
de trapaças de que alguns beneficiam e a que quase todos querem pertencer. Uma
multidão de zelotas em obediência cega a bandos de trapaceiros é uma farsa, não
uma sociedade.
A farsa teria piada se não
tivesse consequências. Tem. Aliás, já começaram e com uma violência
proporcional à fragilidade das nações pelintras. As filas da fome são longas e
crescerão bastante mais, infelizmente não à custa da população ativa hoje inativa
por causa de um vírus a que é praticamente imune. Os que sofrem, e se
candidatam à sopa dos pobres, não são os que ignoram o nexo entre a histeria e
a submissão: são principalmente os que conhecem a relação entre a inércia e a
penúria. Muitos desses não mereciam as “elites”, a cobiça das “elites”, as
grotescas rábulas das “elites”, o “confinamento” infundado, a destruição dos
negócios, o incremento das negociatas, as “etiquetas respiratórias” e
humilhantes, a negação da austeridade, os anúncios da “retoma”, a “retoma”
movida a “investimento” público, as mentiras, os roubos, a prepotência, o
desprezo e a miséria. Os restantes, os que no sofá se abraçam à “hashtag”
#fiquememcasa, merecem tudo. E aplaudem tudo.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
16-5-2020, 0h06
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