Por decisão própria a liberdade não cabe no futuro dos portugueses, que estão a ficar mais pobres, mais oprimidos e, para cúmulo, mais resignados. Poucos reclamam. Em breve talvez nenhum o possa fazer
Alberto Gonçalves
João Galamba, um portento que
servia o “eng.” Sócrates na internet e hoje serve o dr. Costa no governo,
chamou “estrume” ao “Sexta às Nove”. Fez bem. O programa de Sandra Felgueiras é
dos raríssimos produtos televisivos que ainda ousa beliscar o gabarito de quem
manda, uma insolência intolerável na jovem República Popular Portuguesa.
Felizmente, as insolências têm os dias contados. Não tarda, os Galambas desta
vida não precisarão de perder tempo e paciência com insubordinações pela
simples razão de que as ditas serão punidas – e, com certeza, evitadas – por
lei.
A reboque de um “Plano Europeu
de Ação contra a Desinformação”, maravilha que só por si prometia, o prof.
Marcelo, um dos melhores presidentes do mundo, promulgou no passado dia 8 a
“Carta de Direitos Humanos na Era Digital”, de facto o regresso formal da
censura. Claro que, dado o nível de submissão do nosso “jornalismo”, já
praticamente não havia o que censurar.
Mas não convém facilitar. A
“Carta de Direitos Humanos na Era Digital” não facilita: a liberdade de
expressão deixa de ser um direito ou deixa de ser humana.
O documento é um primor. Após cinco artigos repletos de treta “ecuménica” e analfabeta, chega, naturalmente, o Artigo 6º. Diz assim, no ponto 1: “O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação, nos termos do número seguinte.” À primeira vista, isto parece feito para combater as patranhas que o governo nos atira para cima. Não é. É justamente o oposto: o governo reserva-se o poder de nos atirar patranhas sem arriscar o contraditório, a que com alguma graça chama “desinformação”.
O ponto 2 desenvolve: “A
censura terá somente por fim a perversão da opinião pública na sua função de
força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os fatores
que a desorientem contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem
comum.” Ai, desculpem que esta era a cartilha do Estado Novo.
Eis a cartilha do Estado
Novíssimo, que se limita a rasurar “censura”, palavra feia, e faz “copy and
paste” do resto: “Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente
falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens econômicas
ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo
público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos
processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.”
Antes que se desate a festejar
o fim das trafulhices governamentais, susceptíveis de causar prejuízo público e
ameaça aos processos políticos democráticos, eu traduzo o jargão socialista
para português: “Considera-se desinformação todo o escrutínio das mentiras
perpetradas pela oligarquia instalada, etc.” Em suma, contestar o PS passa a
ser crime. Até aqui, era apenas uma impertinência inconsequente – como os
sumiços de Manuela Moura Guedes, Camilo Lourenço e Ana Leal da televisão, e, no
caso de um humílimo colunista, a expulsão do “DN” e da “Sábado”.
No referido Artigo 6º, a
sabuja no cimo do bolo é a matéria do ponto 6: “O Estado apoia a criação de
estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente
registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades
fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.” Leia-se o PS subsidia uns
compinchas para corroborar a propaganda. E o “Polígrafo” terá concorrência
feroz.
Claro que é injusto
responsabilizar unicamente o PS. Por falar em partidos, nenhum votou contra a
dita lei. PS e PAN apresentaram-na, PSD, BE e CDS votaram a favor e o PCP, o
Chega e a IL abstiveram-se. Ou existem parlamentares incapazes de compreender o
perigo nas entrelinhas de um texto primário, o que é uma hipótese, ou todos os
deputados acham razoável que se torture a verdade até que esta confesse e se
adapte ao discurso oficial. Quem não tinha percebido, talvez perceba agora os
resultados das sondagens (e, daqui em diante, das eleições): escolhe-se um
partido por tique ou tradição, mas no fundo é indiferente. O relativo consenso
nos atropelos à civilização a pretexto da Covid foi um indício. A unanimidade
perante a imposição da censura é a confirmação de que entramos num regime de
partido único, com siglas distintas para fingir pluralismo. As dissensões
ficam-se pelo acessório, dos ciganos à TAP, do sr. Cabrita ao funcionamento das
escolas. No essencial, o respeito pela pobre Constituição e, sobretudo, pela
democracia não preocupa ninguém.
E “ninguém” inclui o bom povo,
que há cinco anos assiste com pacatez ao advento da ditadura. Evidentemente,
“ninguém” admite caminhar para aí, por muito que os passos sejam largos e
evidentes. Além de maior flexibilidade nas contas, o que distingue o socialismo
do salazarismo é a impostura lexical: pratica-se a coisa sem a designar
enquanto tal. À semelhança da censura, a ditadura é um conceito antipático cuja
aplicação, à imagem da reverência parlamentar, merece a aprovação da maioria.
E, pelos vistos, a abstenção dos que sobram.
Mesmo que a forma o tente, o
conteúdo não engana. Por decisão própria, a liberdade não cabe no futuro dos
portugueses, que estão a ficar mais pobres, mais oprimidos e, para cúmulo, mais
resignados. Poucos reclamam. Em breve, talvez nenhum o possa fazer.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
15-5-2021
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