Vimos mais uma vez como o Bloco de Esquerda é indiferente a questões como a violência doméstica. O uso que delas faz é oportunista e cínico, apenas para atacar o “sistema burguês”.
Rui Ramos
Valerá a pena insistir na
duplicidade de critérios do Bloco de Esquerda? No entanto, o espetáculo nunca
parece deixar de surpreender. Na última semana, o assunto foi a violência
doméstica. A doutrina do Bloco era clara: todas as denunciantes têm de ser apoiadas,
todos os suspeitos devem ser desde logo vexados e castigados. Mas eis que um
deputado do Bloco é acusado de espancar a companheira. A partir desse momento,
passou a prevalecer a “presunção de inocência” e o denunciado tornou-se a
“vítima”, e como tal com todo o direito a ser acarinhado e até festejado.
Não é, claro, a primeira vez
que uma reviravolta destas acontece. Na especulação imobiliária, também era uma
vergonha fazer dinheiro com a compra e a venda de casas. Não havia desculpa
para a especulação sobre um “bem essencial”. Até ao momento em que um vereador
do Bloco foi apanhado a realizar mais-valias de milhões com edifícios do Estado
adquiridos, aliás, com empréstimos do banco do próprio Estado. A partir daí,
começaram a valer a lei e o mercado: se não é ilegal, tudo está bem. No
discurso de ódio, a mesma coisa. Era inaceitável qualquer linguagem que pudesse
ser interpretada como um incitamento à violência. Até ao momento em que um
assessor do Bloco apelou explicitamente à “morte do homem branco”. Nesse
instante, todas as expressões, por mais violentas, tornaram-se metafóricas e
perfeitamente legítimas no debate público.
Nada disto é uma originalidade da extrema-esquerda em Portugal. Na Grã-Bretanha, o Socialist Workers Party, que corresponde à componente trotskista do Bloco de Esquerda, também se celebrizou em 2013 por ter encoberto acusações de assédio sexual e de violação contra o seu principal dirigente. O SWP fez tudo para impedir as denúncias de chegar à polícia porque, segundo explicou, não desejava de modo nenhum “cooperar com o sistema burguês”. Como aparentemente terá acontecido com o recente caso de violência doméstica no Bloco de Esquerda, onde terá vigorado também um “pacto de silêncio” para proteger o dirigente acusado. É verdade: o líder do SWP acabou por demitir-se, tal como o deputado do Bloco acabou por desistir da candidatura à câmara municipal de Gaia. Mas apenas quando a publicidade começou a danificar a reputação do partido. Foram afastamentos e desistências por uma questão de relações públicas, não por uma questão de decência.
Que se passa aqui? Hipocrisia?
Não, não se trata disso. O problema do Bloco não está no facto de ter gente
gananciosa ou violenta entre os seus ativistas, porque isso haverá em todos os
partidos. O problema do Bloco também não é simplesmente não praticar aquilo que
exige aos outros, como Frei Tomás. É que Frei Tomás, apesar de tudo, acreditava
no que pregava. O Bloco, não. O problema do Bloco é no fundo não levar a sério,
nem a violência doméstica, nem o “discurso de ódio”, nem a especulação
imobiliária. Tal como não leva a sério o racismo, a homofobia, ou a pobreza. Por
quê? Porque o objetivo do Bloco não é corrigir, nesta sociedade, esses males. O
objetivo do Bloco é destruir esta sociedade, não é melhorá-la, e, portanto, o
Bloco apenas usa essas questões num sentido instrumental. Não as atribui a
comportamentos individuais, mas ao “sistema burguês”, isto é, à democracia
representativa, à economia de mercado e ao Estado de direito. Servem-lhe para
tentar afastar do “sistema” aqueles que, natural e justamente, se indignam ou
sofrem com essas situações. Por isso, qualquer caso concreto só interessa ao
Bloco no seu aspecto “sistémico” (como na expressão “racismo sistémico”), isto
é: na medida em que pode ser utilizado para mobilizar as opiniões contra o
“sistema”. É aqui que começa a imoralidade do Bloco: ao servir-se cinicamente
da pobreza ou do racismo para subverter o “sistema” que, na história do mundo,
mais contribuiu para os ultrapassar.
A isenção de responsabilidades
que o Bloco de Esquerda em Portugal ou o SWP na Grã-Bretanha se atribuem a si
próprios faz, deste ponto de vista, todo o sentido. Para o Bloco, a violência
doméstica, o “discurso de ódio” ou a especulação imobiliária não são problemas
dos indivíduos, mas do “sistema”. Por isso, os que lutam contra o “sistema
burguês” até podem ser pessoalmente susceptíveis ao ódio, à violência e à
ganância, mas estão redimidos pelo facto de, apesar de lapsos pessoais,
combaterem o que importa: a suposta fonte “sistémica” do ódio, da violência e
da ganância. Um inimigo do “sistema” terá sempre salvação, por mais lamentável
que seja o seu comportamento; ao contrário, um defensor do “sistema” será
sempre condenado, por mais impecável que seja pessoalmente. É por isso que um
terrorista das FP-25 pode, sem arrependimento, ser candidato e homenageado pelo
Bloco. O Bloco conforta todos os seus membros com o privilégio de uma boa
consciência unicamente determinada pela sua oposição ao “sistema”. Com essa boa
consciência, os bloquistas podem denunciar toda a gente como pecadora, e ao
mesmo tempo praticar os pecados de que acusam os outros, com a certeza de que a
seita saberá absolvê-los. Não, isto não é simplesmente hipocrisia: é a abolição
de toda a responsabilidade moral do indivíduo.
É por isso que este extremismo
esquerdista, que diz lutar por um “mundo melhor”, nunca foi, não é, nem pode
ser uma origem de progresso. O extremismo esquerdista é capaz de explorar todas
as questões possíveis, da pobreza ao racismo, mas no fundo tudo isso lhe é
indiferente. O que lhe importa é apenas subverter e destruir o “sistema
burguês”. O seu uso desses temas é fundamentalmente oportunista e cínico. Se o
BE mandasse, continuaria, como se vê pelos dirigentes do Bloco, a haver gente a
enriquecer, a incitar ao ódio e a abusar de outras pessoas, como houve em todos
os países e em todas as épocas em que comunistas como os do Bloco de Esquerda
tiveram poder para construir a “sociedade socialista”.
A ultrapassagem e a correção
de problemas como a violência doméstica está na liberdade e na responsabilidade
individuais. Está num “sistema” como o que assenta no Estado de direito, na
democracia representativa e na economia de mercado, em que é possível
denunciar, discutir, escolher e formar maiorias para deplorar comportamentos,
responsabilizar indivíduos – e assim mudar atitudes. Acontece que é
precisamente esse “sistema” que o Bloco quer destruir. E é aqui que está
verdadeiramente a imoralidade do bloquismo: no facto de pretender abolir as
condições que permitiram, ao longo de décadas, tornar o mundo um pouco mais
decente.
Título e Texto: Rui Ramos,
Observador,
14-5-2021
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