Viver e não ter vergonha de ser feliz, cantar e ser feliz de não ter vergonha. O herói das câmeras de TV nunca tinha cumprido o juramento com tal abnegação
Guilherme Fiuza
Carlos Henrique Provetta é médico. Quando apareceu uma epidemia ele tranquilizou a todos: deixem esse vírus comigo. Como vamos enfrentá-lo? — quiseram saber os curiosos. Provetta não piscou: no gogó. Alguns inocentes não entenderam a resposta, mas o médico teve paciência para explicar cientificamente o seu brado: quem se garante enfrenta epidemia no gogó. Eu fiz o Juramento de Hipócrita.
Fim de papo. Todos sabiam que
um juramento desses torna qualquer um invencível — o que vem a ser a principal
qualidade do herói. E um herói atrai imediatamente as câmeras de TV —
principalmente depois de afirmar que vai salvar o seu povo no gogó. Luz,
câmera, falação. Lá se foi o Doutor Provetta matraquear pelos cotovelos, ao
vivo, quase 24 horas no ar. Um show. Ninguém tirava o olho do herói — qualquer
distração poderia ser fatal. Vai que você perde alguma palavra-chave e fica
indefeso diante do perigo?
Ele falou de tudo. Disse que a
culpa era dos ricos e a favela ia se ferrar. Mas ele, Doutor Provetta, não
hesitaria em ter uma conversa civilizada com os assassinos que mandam nos
morros — porque traficante também é ser humano e os facínoras haveriam de ter
sensibilidade social e sanitária. Foi praticamente uma aula de sociologia, como
se diz no botequim. Com todo o respeito ao botequim.
Tudo isso de graça. Só um missionário altruísta, um Robin Hood da ciência, compartilharia tanto saber sem cobrar nada de ninguém. Transbordante de empatia e comiseração, o médico revolucionário disse a todos que se isolassem uns dos outros — nada de aproximações inconsequentes que pusessem vidas em risco. Foi então visto num ambiente fechado e aglomerado, sem máscara, abraçando seus áulicos e cantando sorridente: viver e não ter vergonha de ser feliz — ou viver e ser feliz de não ter vergonha (há controvérsias sobre o refrão entoado).
Só uma meia dúzia de inocentes
(sempre os mesmos) quis saber se a muvuca do Provetta não contrariava suas
diretrizes de isolamento. É uma gente obtusa e azeda, que não suporta a
felicidade alheia. Dessa vez o médico revolucionário nem perdeu seu tempo explicando
o óbvio: quem faz o Juramento de Hipócrita tem a obrigação de se aglomerar por
trás do distanciamento social. O escândalo seria jurar hipocrisia e não
praticá-la.
Esses céticos niilistas jamais
compreenderão o poder sagrado do juramento para um homem de fé.
Foi assim que o Doutor
Provetta mandou todo mundo ficar em casa em nome da vida e foi jogar sinuca no
boteco em nome da ciência. Sem máscara, que ninguém é de ferro — e o povo
precisa reconhecer a fisionomia do seu herói para se sentir seguro. Então lá
estava ele, de cara limpa, mostrando que o verdadeiro médico confia no seu taco
quando vê alguém pela bola sete. Viver e não ter vergonha de ser feliz, cantar
e ser feliz de não ter vergonha. O juramento do hipócrita nunca tinha sido
cumprido com tal abnegação.
E você, que talvez nem mereça,
recebeu mais uma lição de graça: o boteco não é só o lugar da sociologia. É
também o lugar da ética.
O que deixou o povo um pouco
confuso foi a reaparição do Doutor Carlos Henrique Provetta de máscara. OK,
agora ele não estava no botequim, mas estava no circo — e aí já começou uma
polêmica sobre as supostas diferenças científicas entre circos e botequins,
porque todos sabem que palhaços e bêbados são iguais perante a lei e ninguém
toleraria diferenças de protocolo sanitário entre essas duas instituições
milenares. Mas logo tudo se esclareceu.
Provetta estava de máscara
porque se encontrava diante de Renan Calheiros — e mesmo um herói invencível
tem seu momento de autocontenção.
A máscara ali não era um sinal
preocupante de que o médico salvador pudesse estar começando a sofrer de
vergonha na cara. Era só um sinal de reverência a um ídolo — porque quem fez o
Juramento de Hipócrita sabe reconhecer um superior juramentado. Enfim, foi um
momento bonito na história da medicina. Solta o som, DJ: viveeeer e não ter
vergonha… etc.
Título e Texto: Guilherme Fiuza, revista Oeste, nº 59, 7-5-2021
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