O presidente mandou o ministro Alexandre de
Moraes (“respeitosamente”) ver se ele estava na esquina e aconteceu menos que
nada
J. R. Guzzo
Oque aconteceria na prática se algum dia, por acaso — só por acaso, claro, sem pensar em nada de mal —, o presidente da República ficasse cheio de atender às ordens que recebe a cada 15 minutos do Supremo Tribunal Federal, para fazer isso ou explicar aquilo, e dissesse: “Eu não vou fazer nada; não me encham mais a paciência?” A Revista Oeste fez essa pergunta, umas poucas edições atrás, e chegou à conclusão de que não iria acontecer rigorosamente nada. Pois então: o tal dia chegou, mais rápido talvez do que se esperava. Bolsonaro mandou o ministro Alexandre de Moraes (“respeitosamente”) ver se ele estava na esquina e aconteceu menos que nada — não houve, sequer, a previsível indignação da mídia, da esquerda e da elite civilizada diante do desafio às instituições etc. etc. Como ficou na cara que o ministro foi desobedecido, sentou-se em cima da desobediência e continuaria sentado, todo mundo logo preferiu fingir que estava “tudo bem” — como se desobedecer a uma ordem do Supremo fosse a coisa mais normal deste mundo. Fazer o quê? Quando você fica no papel de bobo, a melhor coisa é mudar rápido de assunto.
Montagem: revista Oeste |
É o que dá, quando se pensa um
pouco nas coisas, contar com o ministro Moraes para tudo — uma hora, quando a
escolha for entre o couro dele e você (você e todas as suas sagradas
instituições), o homem vai saltar com o seu paraquedas. Mas
isso já é uma outra história, que fica para uma outra vez. O que interessa,
neste caso concreto, é que Alexandre de Moraes deu uma ordem ao presidente da
República e a ordem foi ignorada — e sua reação diante da desobediência foi de
exatamente três vezes zero. Quer dizer que ele não manda em todo mundo, como os
comunicadores (e ele próprio) garantiam que mandava? Pois é; não manda. Manda
prender o ex-deputado Roberto Jefferson, mas não manda prender o presidente. É
complicado, porque agora ficam as incertezas. Moraes vai soltar outra ordem
dessas e, mais uma vez, correr o risco de ver a sua ordem transformada num
pedaço de papel inútil — ou vai baixar o facho? Se não soltar um decreto igual,
e não soltar depressa, é sinal que baixou; fica ruim. E Bolsonaro: vai dizer de
novo “chega, já deu, não perturba” para o próximo comando que receber dele? Já
se viu que não acontece nada quando o presidente manda o STF para o raio que o
parta. Não está claro por que ele faria diferente do que fez agora, na próxima
vez que o mandarem depor numa delegacia de polícia. É, em sua embalagem mais
recente, a famosa “insegurança jurídica” que os ministros criam a cada um dos
seus chiliques permanentes — só que, desta vez, conseguiram criar insegurança
para si próprios.
A ordem foi dada, repetida
e desobedecida
Não houve mal-entendido nenhum
nessa história, como vão tentar dizer ao público que houve, nem “diferenças de
compreensão”, nem “defeito de comunicação” e outras desculpas que dariam
vergonha a um pano de estopa. Ao contrário: nada poderia ter sido mais claro.
Moraes mandou Bolsonaro depor na sexta-feira, dia 28 de janeiro, às 14 horas,
na Polícia Federal de Brasília; fez questão, inclusive, de confirmar sua ordem
mais uma vez, no próprio dia do interrogatório, negando um pedido de “ausência”
feito na última hora pelo Palácio do Planalto. Qual é a dúvida? Não ficou
dúvida nenhuma. A ordem foi dada, repetida e desobedecida. Não há jeito, agora,
de Moraes botar a pasta de dente de novo “no dentifrício”, como diria Dilma
Rousseff. Ele tentou dar alguma explicação, é claro, como essa gente sempre
tenta; como sempre, não adiantou nada. Resmungou alguma coisa sobre “decisão no
plenário”, algo jamais cogitado desde o início dessa comédia; também falou,
naquele português miserável que usa em seus despachos, em “diálogo equitativo
entre Estado-investigador e investigado na investigação”. Que diabo quer dizer
um negócio desses? Moraes acha que é erudito. É apenas incompreensível. Sua
última realização foi encaminhar à PGR uma notícia-crime contra Bolsonaro por
ele ter faltado ao depoimento. Também não se sabe para o que vai servir essa
coisa.
O STF piscou. E daqui para a
frente? Vai piscar de novo?
A conversa do ministro não convence uma criança de 10 anos de idade, mas, no fundo, ele não precisa convencer uma criança de 10 anos de idade; basta convencer os jornalistas e demais influenciadores sociais, e esses ficaram convencidos em cinco minutos. O depoimento de Bolsonaro na Polícia Federal foi uma estupidez, só isso — e quando as coisas acabam assim é melhor não ficar perguntando nem explicando muito, porque só vai aumentar o tamanho do prejuízo, e ninguém quer aumentar o prejuízo de uma estrela do STF, não é?
Em suma: Moraes mandou Bolsonaro fazer
uma coisa, Bolsonaro não fez e acabou não dando em absolutamente nada. Como
poderia ter dado? O ministro parece que só foi pensar nisso depois — você só
pode dar uma ordem a alguém se tem certeza de que dispõe, no ato, dos meios
indispensáveis para fazer com que a sua ordem seja obedecida. Moraes não tinha
meio nenhum para fazer o presidente obedecer a coisa nenhuma; deu no que deu. O
que ele poderia fazer? Mandar a delegada de polícia que convocou para o seu
serviço pessoal, e que tem o direito de andar de revólver na cinta para cima e
para baixo, ir até o Palácio e prender o presidente da República? Já que ele
não vai à polícia, que tal mandar a polícia atrás dele? Não daria certo: a
delegada de Moraes não passaria do porteiro do Planalto. Fora isso, o que mais?
Chamar o Exército? Chamar a Interpol? (O ministro, em outra de suas ideias
fixas no momento, já chamou a Interpol para prender o jornalista Allan dos
Santos, alvo de inquisição no STF e hoje refugiado político nos Estados Unidos;
sequer tomaram conhecimento do seu despacho.) Até o depoimento que não houve,
porém, ele se achava muito bonitão na foto. Fazer o quê? É assim que a situação
ficou. Moraes diz para os jornalistas publicarem que ele é o Rei da Cocada
Preta e muito mais coisa ainda; os jornalistas publicam, encantados, e Moraes
acredita no que mandou publicar. É o diabo. Quando a casa cai, ficam todos
falando sozinhos. Desta vez ficaram.
Anos atrás o senador Renan Calheiros
recebeu do STF a ordem de abandonar o cargo que ocupava; simplesmente ignorou
os ministros e continua lá até hoje, pronto para fazer mais uma CPI e para
receber mais uma medalha de Herói da Democracia, colocada em seu peito por quem
queria vê-lo no olho da rua até anteontem. Ainda outro dia, a Câmara
desobedeceu à ordem, dada pela ministra Rosa, de anular uma lei que havia
acabado de aprovar — e que, é claro, beneficiava diretamente o bolso dos
deputados. Ficou por isso mesmo. Só obedece ao STF, na verdade, quem tem de
obedecer — nos casos em que a obediência é opcional, como acontece quando dão
ordens sem ter cacife para se fazer obedecer, Moraes e os seus companheiros
podem perfeitamente dançar. Desta vez dançaram. A acusação da qual Bolsonaro teria
de se defender na polícia é um completo despropósito, como acontece em todos os
surtos do Inquérito Perpétuo Para Salvar a Democracia que Moraes gerencia há
dois anos — no caso não dá, sequer, para entender direito do que estão falando.
Mas aí é que está: se fosse alguma acusação que ficasse de pé, e Bolsonaro
dissesse que não ia do mesmo jeito, não iria mudar nada. O STF piscou. E daqui
para a frente? Vai piscar de novo? Ou vai olhar para o outro lado?
Título e Texto: J. R. Guzzo,
revista
Oeste, nº 98, 4-2-2022
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-