sábado, 6 de janeiro de 2024

Nunca duvides do poder de uma boa ideia


(…)

“Isso eles nunca irão aceitar. Não tenhas ilusões, Benedictus.”

“Nunca duvides do poder de uma boa ideia”, retorquiu Bento. “Os governos mais tirânicos são aqueles que transformam as opiniões em crimes, pois todas as pessoas têm um direito inalienável aos seus pensamentos. Um governo que tente controlar as mentes é tirânico.

Tentar impor o que é a verdade e o que é falso constitui um abuso de poder e uma usurpação dos direitos dos cidadãos. O pensamento de cada homem é seu e as maneiras de pensar são tão diversas como os palatos. Nem mesmo os mais experientes, já para não falar da multidão, conseguem manter o silêncio.

É comum os homens partilharem os seus planos com outros, mesmo quando há necessidade de segredo, pelo que é abusivo o governo que priva o indivíduo da sua liberdade de dizer e ensinar o que bem entender. O objetivo final da governação não é governar por medo nem impor obediência, mas, bem pelo contrário, libertar cada homem do medo.

O objetivo da governação não é transformar os homens de seres racionais em bestas ou marionetas, mas permitir que eles desenvolvam as suas mentes e corpos em segurança e que empreguem a razão sem restrições. Na verdade, o verdadeiro objetivo da governação é a liberdade.

Quem tudo tenta regular pela lei mais provavelmente cria vícios do que os resolve. Mais vale permitir o que não pode ser abolido, mesmo que seja danoso. Quantos males nascem da luxúria, da inveja, da avareza, do álcool e de coisas do gênero e, no entanto, essas coisas são toleradas precisamente porque não podem ser legalmente impedidas? Por maioria de razão, o livre-pensamento deve ser permitido, uma vez que é uma virtude e não pode ser esmagado.

Tal liberdade é absolutamente necessária para o progresso da ciência e das artes liberais, pois nenhum homem as exerce bem sem ser inteiramente livre.”

“Sim, mas imaginemos pode ser esmagada e os homens subjugados de tal maneira que nem possam sussurrar sem ser para dizerem o que os governantes querem”, contrapôs Rieuwertsz. “Como seria nesse caso?”

“Mesmo assim não é possível pô-los a pensar como a autoridade quer, o que tem como consequência necessária que todos os dias os homens estariam a pensar uma coisa e a dizer outra, corrompendo a boa-fé e alimentando a sabujice e a perfídia.

Leis deste tipo, a receitar o que cada homem deve acreditar e a proibir as pessoas de dizerem ou escreverem coisas em contrário, têm sido aprovadas com frequência como concessões à fúria daqueles que não toleram homens iluminados e que, por manipulação, facilmente transformam a devoção das massas em fúria e a dirigem contra quem quiserem.

Que maior tristeza para um Estado pode ser concebida que homens honrados sejam tratados como criminosos apenas porque têm opiniões diferentes?”

“Como Koerbagh.”

“Como Koerbagh, como Galileu, como Giordano Bruno e como tantos outros”, lembrou o filósofo. “O que pode ser mais danoso, pergunto eu, que ver homens que não cometeram qualquer crime ou maldade serem tratados como inimigos e mortos?

A liberdade de pensamento deve ser assegurada para que os homens vivam juntos em harmonia, mesmo tendo opiniões diferentes ou abertamente contrárias. Uma tal forma de governo é a melhor e a que em maior harmonia com a natureza humana.

Numa democracia, a mais natural forma de governo, todos se submetem ao controle da autoridade sobre os seus atos, mas não sobre o seu pensamento e a sua razão. A cidade de Amesterdã colhe o fruto desta liberdade pela grande prosperidade que ela gera e pela admiração que suscita em todos os outros povos.

Os cismas não têm a sua origem no amor pela verdade, mas num desejo ilimitado de supremacia. É tão claro como o Sol do meio-dia que os verdadeiros cismáticos são aqueles que condenam os escritos de outros homens e incitam as massas contra os seus autores.

Na verdade, os verdadeiros perturbadores da paz são aqueles que, num Estado livre, tentam limitar a liberdade de pensamento. Cada homem deveria pensar o que quiser e dizer o que pensa.”

(…)

Bento de Espinosa, (Amesterdã, 24 de novembro de 1632 – Haia, 21 de fevereiro de 1677] in “O segredo de Espinosa”, de José Rodrigues dos Santos, páginas 411 a 413.
Digitação: JP, 3-1-2024

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