Reinaldo Azevedo
Vejam este quadro do francês
Jean-Baptiste Debret, que retratou o Brasil do começo do século 19. Olhem ali o
escravo a proteger do sol o nhonhô que faz xixi na rua. Os “donos do poder”,
para lembrar o livro de Raymundo Faoro, evocado por Roberto Gurgel na sua
denúncia, continuam a fazer xixi, agora sobre a República e a Constituição. E
os escravos somos nós, os pagadores de impostos do país dos fidalgos.
Recebi muitos pedidos para que
escreva algo sobre o pos tpublicado na madrugada de sábado pelo jornalista Ricardo Noblat em seu blog,
relatando um episódio estupefaciente. Saía ele de uma festa, em Brasília,
quando, disse, foi colhido por uma metralhadora de impropérios disparados por
ninguém menos do que José Antonio Dias Toffoli, ministro do Supremo Tribunal
Federal, membro de um colegiado que distingue apenas 11 pessoas na República.
O ministro estaria descontente
com uma opinião expressa por Noblat, que também havia defendido que ele se
declarasse impedido de participar do julgamento. (Em 31 de julho de 2012):
Reproduz o jornalista as palavras que teriam sido ditas pelo ministro (em vermelho):
— Esse rapaz é um canalha, um
filho da puta.
Repetiu “filho da puta” pelo
menos cinco vezes. E foi adiante:
— Ele só fala mal de mim.
Quero que ele se foda. Eu me preparei muito mais do que ele para chegar a
ministro do Supremo.
(…)
Comentar o quê?
Divirjo de Noblat em muitas
escolhas. Quando se trata de coisa relevante, digo aqui a razão. Mas pergunto:
por que motivo inventaria uma história cabeluda como essa? O jornalismo
petralha definiu os seus inimigos de estimação, não é? Aqueles que estariam
sempre, segundo seus delírios, perseguindo os heróis petistas. Noblat não está
entre os alvos fixos da turma. José Dirceu, se não me engano, é colunista do
seu blog — Toffoli também teria se referido a esse fato com esta fala:
— O Zé Dirceu escreve no blog
dele. Pois outro dia, esse canalha o criticou. Não gostei de tê-lo encontrado
aqui. Não gostei.
Tendo acontecido assim, vê-se
um Toffoli tomando, de público, as dores de Zé Dirceu.
Brasília promíscua
Trabalhei em Brasília em 1996.
Detesto sair de casa, mas fui a algumas poucas festas — poucas: minha filha
mais velha tinha acabado de completar um ano, e minha mulher estava grávida da
segunda; preferia ficar com elas. Já então estranhava o que chamei de
“promiscuidade brasiliense”.
Não havia beberagem no
Planalto Central que não juntasse jornalistas, deputados, senadores, ministros,
quadros da burocracia… Desenvolvi, desde aquela época, tese que tenho até hoje:
houvesse no Brasil tabloides de modelo inglês, a República cairia. E não seria
necessário praticar nenhuma das delinquências do “News of the World”. Se querem
saber, o Brasil seria muito mais saudável. Quantas vezes se viram e se veem respeitáveis
autoridades a sair carregadas de restaurantes da moda, entupidas de álcool, sem
que se tenha publicado uma miserável nota nos jornais? Por que não? Ah, isso
tudo é vida privada!
Uma ova! O jornalismo
brasiliense desenvolveu uma gigantesca tolerância para desvios de conduta de
homens públicos. O pior é que isso está ligado, lá vou eu, ao “fontismo”. Faz
parte da camaradagem. Jornalista que decidir contar o que viu nessas festas ou
nesses convescotes sabe que está marcado. Ninguém mais vai querer falar com ele
— e pode ser alvo de críticas dos próprios colegas.
Noblat não teria escrito nada
sobre a festa não fossem as ofensas de que foi alvo. Tratava-se, segundo fiquei
sabendo, de um encontro na casa de Fernando Neves, ex-ministro do TSE. O
blogueiro do Globo não era o único jornalista. Havia outros. Toffoli não era a
única autoridade. Havia outras. Lá estava Antônio Carlos de Almeida Castro, o
Kakay, um dos advogados de defesa do mensalão — dos mais estrelados —, em
processo no qual Toffoli é… juiz!
“É assim no mundo inteiro,
Reinaldo!” Não! Errado! NÃO É ASSIM NO MUNDO INTEIRO! Não no mundo democrático.
Lamento! Esses eventos reúnem todas as características da antiga corte, que separava
os fidalgos — ainda que pudesse ter suas divergências — da ralé.
Testemunho
Enviaram-me há pouco uma
mensagem — não sei se é comentário publicado no blog de Noblat ou carta aberta;
pouco importa — em que um rapaz chamado Eduardo Pertence contesta as
informações publicadas pelo jornalista. Vale a pena ler. É um mimo e um emblema
do que estou dizendo aqui.
“Caro Noblat,
Aprendi a lhe respeitar e
admirar desde criança, por consequência do meu pai, Sepúlveda Pertence, seu
amigo e admirador.
Contudo, não posso deixar de
demonstrar meu espanto com essa leviana notícia. Estava eu, junto ao meu pai,
nessa mesma festa. Você foi recebido na mesa dela, com todas as loas e elogios.
Fiquei na festa até o final,
chegando a acompanhar o Min. Toffoli até o seu carro, quando ele foi embora.
Afirmo não ter presenciado nada parecido com o que você noticiou aqui.
Não vi, nem ouvi dele, nada
assemelhado as loucuras aqui publicadas. De minha parte, testemunho que isso
não houve. De sua parte, espero que o Mensalão não esteja alterando sua noção
de realidade.
Continue, fora isso, sendo o
grande e admirável jornalista que sempre foi. Com respeito, mas espanto.
Eduardo Pertence.”
Comento
Sendo verdadeira essa mensagem
(refiro-me à origem do texto, não ao seu conteúdo), noto a ligeireza com que o
filho evoca o nome do pai para demonstrar que, no fim das contas, todos
pertencem à mesma grei: à dos homens incomuns. Noblat é tratado como aquele que
é recebido à mesa — afinal, jornalistas gozam da fidalguia por uma espécie de tolerância,
não de mérito de berço, né? — e que acabou traindo a confiança da turma.
Eduardo Pertence assegura que o fato não se deu (se ele fala a verdade, Noblat
seria o quê?), mas expressa seu respeito ao outro, que segue sendo uma pessoa
admirável, embora, segundo ele, minta um pouquinho… O que Eduardo tem de seu
para asseverar que o outro falta com a verdade? O nome “Pertence” e o fato de
conhecer o blogueiro desde criança…
Ah, sim, para quem não lembra:
Sepúlveda Pertence é ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e é o atual
presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República.
Fidalgo quer dizer “filho de
algo”. Se estudarem a origem espanhola da expressão, chegarão a “hi d’algo”,
que designava “home de dinheiro”, por oposição ao Zé Ninguém, ao despossuído.
Eu estou entre aqueles que
consideram que um dos males de Brasília — apenas um deles — é ter criado uma
ilha da fantasia que protege do povo os fidalgos. O poder público se tornou
algo a ser compartilhado entre “os iguais” na fidalguia. Os “diferentes” ficam
na periferia: literalmente, o resto do Brasil.
Estou entre aqueles que acham
que deputados, senadores, ministros de estado, ministros do Supremo, autores em
geral perdem boa parte do direito que os homens comuns têm à chamada “vida
privada”. Eu até poderia encher a cara e dar vexame na rua, na chuva, na
fazenda ou numa casinha de sapé — embora nunca o tenha feito, que me lembre ao
menos… Isso não é nem deve ser notícia. Não carrego a força de uma
representação. Não recebo dinheiro público para ser um homem exemplar. Não
disponho dos instrumentos de qualquer dos Três Poderes da República.
Autoridades da República têm
de saber se portar — e, por óbvio, saber beber. Aliás, como regra geral, todos
deveriam ter um norte ético: “Se beber, não xingue ninguém”.
E fica aqui um convite aos
coleguinhas de Brasília: comecem a contar tudo o que vocês veem em festas e
restaurantes. Terá um poder saneador da República maior do que CPIs e
julgamentos do Supremo.
PS – Ah, sim: Nelson Jobim
também estava lá. Mas é inútil perguntar se ele viu alguma coisa.
Título, Imagem e Texto: Reinaldo Azevedo, 14-8-2012
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