José Manuel
Imagem: Neuza Vida Gomes
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Após anos vagando perdidos por
mares já fartamente navegados, mas, acima de tudo, bastante suspeitos e nunca
dantes conhecidos, enfrentando todo o tipo de ondas, ventos com rajadas
frontais, laterais, traseiros, a nau dos sensatos, dos que
apenas trabalharam a vida inteira nas galés, teimava em continuar navegando pelo oceano da maldade desconhecida,
pelo oceano da injustiça, onde grandes zonas de calmaria faziam com que a nau
perdesse mais e mais o rumo a cada dia que passava.
As velas, profundamente
atingidas pelas tempestades, eram costuradas e costuradas para que não se
perdesse um mínimo de aragem que a esperança soprava, em uma tênue demonstração
de que valia a pena continuar e continuar.
E assim se fazia com as
costuras diárias nos trapos que restavam, mas que eram como fios de vida a cada
novo sopro de vento.
O casco, nem se fala, pois o
longo tempo em navegação e sem a manutenção adequada, já mostrava sérios pontos
de infiltrações, com água se fazendo aos porões, limitando cada vez mais a
velocidade da nau rumo a um novo mundo, a uma nova era na vida daqueles que a
tripulavam.
Ao contrário de uma outra que
com eles cruzou pelo mar do desconhecido, a nau dos insensatos,
estes apesar de perturbados sabiam muito bem o que queriam e para onde iam.
Porém, aquele mar bravio que
tudo destrói, que tudo corrompe, continuava ceifando vidas ao longo daqueles
quase NOVE anos de navegação no escuro.
Doenças grassavam pela falta
das vitaminas necessárias, da alimentação adequada, da higiene necessária, do
repouso acalentador.
Como se todos ao mesmo tempo
tivessem contraído escorbuto, seus dentes foram caindo, acabando com a vontade
de comer, a vontade de sorrir, a vontade de viver.
Ilustração: Artur Fujita |
Dois mil e duzentos dias já
eram passados desde que ao mar das intempéries foram lançados, quando em uma
das muitas calmarias em que se encontravam, num certo 13 de julho, ouviram a voz desesperada do Gajeiro que
se encontrava no cesto da gávea, preso ao mastro central que gritava a todo
pulmão que estava vendo uma ação civil pública ao longe,
no horizonte perdido.
Foi uma loucura, um frenesi
correu por aquele convés apinhado de gente que se contraía na expectativa de
uma chegada à terra firme de uma vez por todas. Porém, aos poucos e não
se sabe como, a calmaria e uma bruma forte foi se alastrando pela superfície
daquele mar de interrogações, sem que ninguém conseguisse entender como haviam
perdido aquela oportunidade de chegar finalmente a algum lugar.
A nau, apesar dos alimentos
estarem chegando ao fim, pois agora só quando se conseguia pescar um ou outro
peixe é que comiam, pois a ração mensal cada vez diminuía mais e tinha menos
valor energético, continuava a navegar nas ilusões de cada um daqueles pobres
coitados, que o tempo se encarregava de empurrar com breves sopros de ar e
miragens constantes de baías acolhedoras costas arenosas e palmeiras
suculentas.
Os mortos se sucediam naquela
que muitos acreditavam ser uma viagem sem volta, sem chegada. Já não mais se
fazia a cerimônia do corpo ao mar, tal era a frequência com que isso acontecia
e só o réquiem era ouvido por todos, mas mesmo assim em sussurros, pois nem
força mais tinham para chorar os seus entes queridos.
Até que, mais uma vez, numa tarde clara de 12 de março, e passados já quase três mil dias, todos
foram acordados de sua sonolência desnutrida pelos gritos fracos desta vez,
pois o gajeiro famélico mal se equilibrava ao alto da
cesta e emitia sinais de “à vista” uma Tarifária, com
uma imagem forte e clareza cinco.
Mais uma vez e com as forças
reunidas até ao estertor todos se abraçavam e já contavam com o solo firme a
seus pés, com a alimentação correta às suas tigelas, com o pulsar de seus
corações novamente em ritmo adequado à vida. Foi uma festa ímpar, pois a imagem
que todos conseguiam ver era Supremo a tudo o que já
tinham visto, e não era possível agora, que a costa nunca tão perto estivera,
se tornasse inacessível outra vez.
Mas, mais uma vez, uma forte
calmaria forense, provocada não se sabe porque
fenômeno, os afastou daquela oportunidade ímpar de regeneração humana.
Aí, após estes trágicos
acontecimentos e sem a menor previsão do que poderia lhes acontecer, com as
reservas de alimentos já em racionamento máximo, a água da pouca chuva que os
visitava, em minimas quantidades, tiveram que jogar ao mar mais um corpo.
O gajeiro não resistiu a tantos dias se equilibrando e se
desnutrindo, finalmente de lá caiu sem dar um grito sequer.
Para piorar, o caos e a
insubordinação da tripulação que tentava a todo custo conter os reclamos
dos passageiros da agonia em que havia se transformado aquela nau,
deterioraram de vez a instabilidade a que vinham sendo submetidos.
A nau, agora mais sem rumo
ainda e com as esperanças perdidas, pois não mais havia o que comer, à deriva,
pois não mais existiam velas, o casco fazendo água e um motim generalizado, foi
sacudida por gritos lancinantes que vinham desta vez do porão fétido.
Aqueles que ainda conseguiam
se mover foram se arrastando, descendo pelas escadas ensebadas para encontrar
quem gritava em desespero e o que significavam aqueles gritos.
Encontraram um pequeno homem,
com a cabeça enfiada em um buraco no casco, gritando que estava vendo muito
perto da nau, uma Tutela antecipada. Era o dia 19 de setembro de 2014, portanto, três mil cento e oitenta dias desde
que àquele barco haviam chegado.
Estão todos como mortos vivos,
com o olhar firme para a terra, pendurados na amurada da nau que se aproxima do
seu destino final, lentamente, como se a lentidão pérfida fosse o último sopro
de vida que lhes resta.
Desconhecemos se a nau
conseguirá finalmente atracar, mas temos a certeza que caso se repita outra
calmaria neste mar indigno, a nau dos
sensatos pode se transformar naquela outra nau que cruzou o seu caminho no meio da viagem.
Título e Texto: José Manuel, ex-tripulante Varig,
16-10-2014
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Prezado Manuel!
ResponderExcluirA Nau continua navegando...
Apesar dos pesares ela ainda tem sustentabilidade...
Ela não vai "sucumbir" totalmente....
Suas partes podem ser utilizadas como boia...
E alguns passageiros e tripulantes poderão se salvar...Afinal, sabemos que não se "entregam" facilmente...Todos tem sede de vida e são tenazes em seus princípios...
Aliás, você esqueceu que, durante todo malfadado trajeto percorrido pena nau, alguns passageiros e tripulantes conseguiram pular ao mar e nadar até a costa...
É certo que grande parte sobreviveu...catando "coquinhos" na "orla marítima"...
Alguns foram acolhidos por amigos e conseguiram melhores "alimentos"; outros, não! seus corpos servir am de alimento aos peixes . A maioria ainda padece do mal, da falta de assistência digna de um sobrevivente "naufragado"...
A JUSTIÇA responsável por estes casos de "naufrágio" não quer assumir a responsabilidade do salvamento dessas almas...
O que fazer? A justiça é humana, e por isto é falha...
"Ela" não quer dar guarida alegando "falta" de recursos...pois precisam ser "aplicados" em projetos de "atividades" em prol da comunidade à que fazem parte...Afinal a prioridade lhes pertence...
Tenho certeza apenas de uma coisa: A justiça humana é tardia e falha... Mas a Justiça Divina:: tarda mas não falha...
Felicidades, meu amigo! (extensiva à comunidade de navegantes...)
Amilton Corrêa (Varig-Aerus)