quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A nau dos sensatos

José Manuel


Após anos vagando perdidos por mares já fartamente navegados, mas, acima de tudo, bastante suspeitos e nunca dantes conhecidos, enfrentando todo o tipo de ondas, ventos com rajadas frontais, laterais, traseiros, a nau dos sensatos, dos que apenas trabalharam a vida inteira nas galés, teimava em continuar navegando pelo oceano da maldade desconhecida, pelo oceano da injustiça, onde grandes zonas de calmaria faziam com que a nau perdesse mais e mais o rumo a cada dia que passava.

As velas, profundamente atingidas pelas tempestades, eram costuradas e costuradas para que não se perdesse um mínimo de aragem que a esperança soprava, em uma tênue demonstração de que valia a pena continuar e continuar.
E assim se fazia com as costuras diárias nos trapos que restavam, mas que eram como fios de vida a cada novo sopro de vento.

O casco, nem se fala, pois o longo tempo em navegação e sem a manutenção adequada, já mostrava sérios pontos de infiltrações, com água se fazendo aos porões, limitando cada vez mais a velocidade da nau rumo a um novo mundo, a uma nova era na vida daqueles que a tripulavam.
Ao contrário de uma outra que com eles cruzou pelo mar do desconhecido, a nau dos insensatos, estes apesar de perturbados sabiam muito bem o que queriam e para onde iam.

Porém, aquele mar bravio que tudo destrói, que tudo corrompe, continuava ceifando vidas ao longo daqueles quase NOVE anos de navegação no escuro.
Doenças grassavam pela falta das vitaminas necessárias, da alimentação adequada, da higiene necessária, do repouso acalentador.
Como se todos ao mesmo tempo tivessem contraído escorbuto, seus dentes foram caindo, acabando com a vontade de comer, a vontade de sorrir, a vontade de viver.

Ilustração: Artur Fujita
Dois mil e duzentos dias já eram passados desde que ao mar das intempéries foram lançados, quando em uma das muitas calmarias em que se encontravam, num certo 13 de julho, ouviram a voz desesperada do Gajeiro que se encontrava no cesto da gávea, preso ao mastro central que gritava a todo pulmão que estava vendo uma ação civil pública ao longe, no horizonte perdido.

Foi uma loucura, um frenesi correu por aquele convés apinhado de gente que se contraía na expectativa de uma chegada à terra firme de uma vez por todas. Porém, aos poucos e  não se sabe como, a calmaria e uma bruma forte foi se alastrando pela superfície daquele mar de interrogações, sem que ninguém conseguisse entender como haviam perdido aquela oportunidade de chegar finalmente a algum lugar.

A nau, apesar dos alimentos estarem chegando ao fim, pois agora só quando se conseguia pescar um ou outro peixe é que comiam, pois a ração mensal cada vez diminuía mais e tinha menos valor energético, continuava a navegar nas ilusões de cada um daqueles pobres coitados, que o tempo se encarregava de empurrar com breves sopros de ar e miragens constantes de baías acolhedoras costas arenosas e palmeiras suculentas.

Os mortos se sucediam naquela que muitos acreditavam ser uma viagem sem volta, sem chegada. Já não mais se fazia a cerimônia do corpo ao mar, tal era a frequência com que isso acontecia e só o réquiem era ouvido por todos, mas mesmo assim em sussurros, pois nem força mais tinham para chorar os seus entes queridos.
Até que, mais uma vez, numa tarde clara de 12 de março, e  passados já  quase três mil dias, todos foram acordados de sua sonolência desnutrida pelos gritos fracos desta vez, pois o gajeiro famélico mal se equilibrava ao alto da cesta e emitia sinais  de “à vista” uma Tarifária, com uma imagem forte e clareza cinco.

Mais uma vez e com as forças reunidas até ao estertor todos se abraçavam e já contavam com o solo firme a seus pés, com a alimentação correta às suas tigelas, com o pulsar de seus corações novamente em ritmo adequado à vida. Foi uma festa ímpar, pois a imagem que todos conseguiam ver era Supremo a tudo o que já tinham visto, e não era possível agora, que a costa nunca tão perto estivera, se tornasse inacessível outra vez. 
Mas, mais uma vez, uma forte calmaria forense, provocada não se sabe porque fenômeno, os afastou daquela oportunidade ímpar de regeneração humana.

Aí, após estes trágicos acontecimentos e sem a menor previsão do que poderia lhes acontecer, com as reservas de alimentos já em racionamento máximo, a água da pouca chuva que os visitava, em minimas quantidades, tiveram que jogar ao mar mais um corpo. O gajeiro não resistiu a tantos dias se equilibrando e se desnutrindo, finalmente de lá caiu sem dar um grito sequer.

Para piorar, o caos e a insubordinação da tripulação que tentava a todo custo conter os reclamos  dos passageiros da agonia em que havia se transformado aquela nau, deterioraram de vez a instabilidade a que vinham sendo submetidos.

A nau, agora mais sem rumo ainda e com as esperanças perdidas, pois não mais havia o que comer, à deriva, pois não mais existiam velas, o casco fazendo água e um motim generalizado, foi sacudida por gritos lancinantes que vinham desta vez do porão fétido.

Aqueles que ainda conseguiam se mover foram se arrastando, descendo pelas escadas ensebadas para encontrar quem gritava em desespero e o que significavam aqueles gritos.

Encontraram um pequeno homem, com a cabeça enfiada em um buraco no casco, gritando que estava vendo muito perto da nau, uma Tutela antecipada. Era o dia 19 de setembro de 2014, portanto, três mil cento e oitenta dias desde  que àquele barco haviam chegado.

Estão todos como mortos vivos, com o olhar firme para a terra, pendurados na amurada da nau que se aproxima do seu destino final, lentamente, como se a lentidão pérfida fosse o último sopro de vida que lhes resta.

Desconhecemos se a nau conseguirá finalmente atracar, mas temos a certeza que caso se repita outra calmaria neste mar indigno, a nau dos sensatos pode se transformar  naquela outra nau que cruzou o seu caminho no meio da viagem.
Título e Texto: José Manuel, ex-tripulante Varig, 16-10-2014

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Um comentário:

  1. Prezado Manuel!

    A Nau continua navegando...
    Apesar dos pesares ela ainda tem sustentabilidade...
    Ela não vai "sucumbir" totalmente....
    Suas partes podem ser utilizadas como boia...
    E alguns passageiros e tripulantes poderão se salvar...Afinal, sabemos que não se "entregam" facilmente...Todos tem sede de vida e são tenazes em seus princípios...
    Aliás, você esqueceu que, durante todo malfadado trajeto percorrido pena nau, alguns passageiros e tripulantes conseguiram pular ao mar e nadar até a costa...
    É certo que grande parte sobreviveu...catando "coquinhos" na "orla marítima"...
    Alguns foram acolhidos por amigos e conseguiram melhores "alimentos"; outros, não! seus corpos servir am de alimento aos peixes . A maioria ainda padece do mal, da falta de assistência digna de um sobrevivente "naufragado"...
    A JUSTIÇA responsável por estes casos de "naufrágio" não quer assumir a responsabilidade do salvamento dessas almas...
    O que fazer? A justiça é humana, e por isto é falha...
    "Ela" não quer dar guarida alegando "falta" de recursos...pois precisam ser "aplicados" em projetos de "atividades" em prol da comunidade à que fazem parte...Afinal a prioridade lhes pertence...
    Tenho certeza apenas de uma coisa: A justiça humana é tardia e falha... Mas a Justiça Divina:: tarda mas não falha...

    Felicidades, meu amigo! (extensiva à comunidade de navegantes...)

    Amilton Corrêa (Varig-Aerus)

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