segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Europa: a esquerda não é solução

As regras orçamentais europeias foram postas em causa por cinco países, todos liderados pelo centro-esquerda. A esquerda assume ao que vem – não é preciso ter alternativas, basta fazer braços-de-ferro
Alexandre Homem Cristo
A Comissão Europeia analisou as propostas orçamentais dos seus estados-membros para 2015, e verificou que algumas se arriscam a incumprir as regras orçamentais europeias. Pediu esclarecimentos. Em plena crise, a questão não é um pormenor. Até porque, em último caso, está em causa o próprio Euro. Que países são esses? França, Itália, Áustria, Eslovénia e Malta. E o que têm em comum? São governados por líderes de centro-esquerda. Não é uma coincidência: começou um combate ideológico na Europa.

Nesse combate, sabemos quem está de que lado, o que defende a Alemanha e o que consta do Tratado Orçamental. O que não sabemos é o que defendem os outros. Perante as primeiras trocas de tiros, é essa a questão que sobressai: para além de reflexo do desgaste social e político causado pelas políticas de austeridade, qual o conteúdo desta posição de resistência? Sem contar com intenções nobres acerca do crescimento económico, o que defendem França e Itália de concreto em alternativa à disciplina orçamental? Ninguém diz. Provavelmente, porque ninguém sabe. E, certamente, porque isso já não interessa.

Não interessa porque o campo das ideias foi abandonado. Os anos da crise internacional foram marcados por muitas tensões políticas, também em resultado de uma alteração dos equilíbrios de poder na Europa, que levou à supremacia da Alemanha. Uma supremacia que os franceses juraram combater, porque “la France est grande” e acredita que nasceu para liderar. Há 6 anos que se anda em debates, em trocas de ideias, em busca de alternativas. E os partidos de centro-esquerda, tão habituados a aumentar o endividamento, emudeceram face à necessidade de o diminuir. Agora, em vésperas de 2015, assumiram ao que vêm – não é preciso ter alternativas, basta fazer braços-de-ferro. A lei faz-se pela força.

Com algum realismo, podemos antecipar que este braço-de-ferro não será suficiente para perturbar o euro, até porque a Alemanha procurará um compromisso político com a França e Itália. Mas isso não impede de julgarmos a irresponsabilidade das posições francesa e italiana, aparentemente dispostas a sacrificar a moeda única para ganhar o duelo orçamental. Mesmo que tudo seja bluff, ver dois países fundadores da CEE a brincar com a integração europeia é lamentável. E perigoso.

Perigoso porque todo este jogo político demonstra bem como tantos dos políticos europeus vivem ainda na maior ilusão dos nossos tempos: a de que as nossas instituições são eternas, invencíveis, inabaláveis. A de que tudo se resolve. Ou, dito de outro modo, a de que, em última análise, nenhuma ameaça é ameaça. E que, por isso, os actos irresponsáveis não têm consequências – pelo menos daquelas que afectem estruturalmente. Há mesmo muita gente que acredita numa espécie de fim da história com sede em Bruxelas.

Acreditar nisso tudo não é somente ingenuidade. É também o que permite hoje à esquerda europeia lavar as mãos da sua irresponsabilidade e optar por não ser solução. No fundo, pôr-se à margem do debate estratégico que a Europa precisa. Já que não encontra alternativas que agradem, esquece que existe problema. E torna-se um obstáculo. O que estes líderes de centro-esquerda estão a fazer é isso: pensar no curto prazo, manter o rumo de sempre e esperar que a crise europeia desapareça por si. O longo prazo não vence eleições. E, da sua perspectiva, o pior que pode acontecer é ter de vir a direita resolver a trapalhada.

Que fique, pois, como lição desta crise europeia: a esquerda não quis ser solução. Cruzar os braços é fácil. Prometer o crescimento é bonito. Mas tudo fica mais feio quando o que cresce, afinal, é a dívida.
Título e Texto: Alexandre Homem Cristo, Observador, 27-10-2014

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