Ramiro Marques
Aqueles que vaticinaram que
a queda do Muro de Berlim marcou o fim da ideologia comunista ignoraram os
escritos de António Gramsci e falaram cedo de mais.
1. De facto não é possível educar
para promover a mudança social sem que essa mudança ocorra primeiro em quem
educa (1). (Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. (2014).
Coeducação, Percursos e Desafios, Presidência do Conselho de Ministros, página
8)
Esta afirmação, retirada de uma publicação com a chancela da Comissão para
a Cidadania e a Igualdade de Género, uma estrutura administrativa sob a tutela
direta da Presidência do Conselho de Ministros, revela, de forma inequívoca,
uma agenda política: fazer das escolas os espaços onde, através do currículo
prescrito e do currículo informal, se faz a ressocialização das crianças e dos
jovens, usando para isso a prévia e necessária ressocialização dos professores
durante o processo de formação inicial e de formação contínua.
A mudança [de mentalidades] tem de ocorrer a montante, durante a formação
inicial dos futuros professores para que fique assegurado que a ressocialização
gera ressocialização. A estratégia de tomada de controlo ideológico das escolas
[e dos media e restantes instituições socializadoras] foi definida, na década
de 30 do século passado, pelo comunista italiano António Gramsci (2) e, desde
aí, usada até à exaustão pelo movimento revolucionário em todas as suas
inúmeras versões e formas. O sucesso do processo de tomada do controlo
ideológico das escolas é tanto mais eficaz quanto mais impercetível ele for. Os
sujeitos que dele são objeto não chegam sequer a aperceber-se de que estão a
ser vítimas de um processo de ressocialização, que visa apagar as suas raízes
culturais, substituindo-as por um novo cânone, aberto ao experimentalismo
construtivista, que os “liberta” da “tirania” do “obscurantismo cultural” a que
supostamente as tradições os submeteram.
Uma vez a ressocialização concluída, os sujeitos estão disponíveis para
abraçar toda a espécie de construtivismos culturais e políticos, em torno dos
novos valores e experimentalismos que os vão libertando das “trevas da
tradição”. Quando se chega a esta fase, os indivíduos estão preparados para
abraçar todos os temas fraturantes que as vanguardas revolucionárias inventarem
tendo em vista a construção do “Homem Novo”, liberto da “tirania” da tradição e
da biologia. Fica também aberta a tomada do poder pela vanguarda revolucionária
sem derramamento de sangue, pelo menos na primeira fase.
2. Não é fácil apagar as crenças
estereotipadas da memória das sociedades e dos grupos, pois elas fazem parte de
uma herança cultural fortemente arreigada nos indivíduos, em virtude do seu
processo de socialização (Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.
(2014). Coeducação, Percursos e Desafios, Presidência do Conselho de Ministros,
página 8)
Esta afirmação não deixa margem para dúvidas sobre qual é a agenda
política: o objetivo é combater as crenças criadas em torno de uma herança
cultural. Nada é dito sobre a substituição dessas crenças por outras. Isso fica
subentendido. As primeiras crenças [que urge apagar das consciências dos
indivíduos] são obscurantistas; as segundas crenças, libertadoras. As primeiras
são más, as segundas naturalmente boas. Quem permanecer agarrado às primeiras é
catalogado com o carimbo de reacionário (3). Quem abraçar as segundas é visto
como progressista. E o “processo de libertação” fica a cargo do professor que
assume o papel de intelectual transformador, instrumento ao serviço do projeto
revolucionário em curso. Um projeto sem fim, porque sempre inacabado, que se
alimenta do movimento. Um projeto revolucionário sem calendário, sem metas
concretas, é sempre vitorioso, na medida em que não tem fim, podendo renascer
continuamente das cinzas, apresentar-se com novas máscaras e roupagens,
alimentando-se de todos os ressentimentos e culpas.
Aqueles que vaticinaram que a queda do Muro de Berlim marcou o fim da
ideologia comunista ignoraram os escritos de António Gramsci e falaram cedo de
mais.
Notas:
1) Tenha-se em conta que esta publicação é de 2014 e tem a chancela de
uma estrutura administrativa tutelada pela Presidência do Conselho de Ministros,
supostamente de um Governo de direita, sistematicamente acusado pelo movimento
revolucionário de ser neoliberal.
2) António Gramsci, comunista italiano, nasceu em 1891 e morreu em 1937. Principais
escritos: Pre-Prison Writings (Cambridge University Pres); The Prison
Notebooks (Columbia University Press); Selections
from the Prison Notebooks (International Publishers)
3) Tal como o autor deste texto vai ser acusado não só de ser reacionário
como de ser contra a igualdade de género, pese embora o autor nunca ter feito
afirmações nesse sentido. Não interessa que nunca tenha feito afirmações nesse
sentido; o que interessa são as intenções obscuras que os revolucionários vão
colar ao autor. Para a vanguarda revolucionária, a verdade não interessa; a única
coisa que interessa é o movimento.
Título e Texto: Ramiro Marques, Professor coordenador principal no Instituto Politécnico de Santarém;
Membro do Conselho Nacional da Educação, Observador,
7-11-2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-