Os portugueses não gostam de chatices. E,
no final do dia, talvez lhes seja mais apetecível ter um governo pior que
assegure a paz, em vez de um governo melhor que só tenha de enfrentar guerras.
Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da República e não o comentador televisivo (convém relembrar), discorda da escolha de “geringonça” para palavra do ano em 2016. Fosse ele a escolher, a palavra eleita seria “descrispação”. Não admira. Essa palavra é inventada pelo próprio (ou seja, não existe nos dicionários). Foi por ele utilizada várias vezes nas suas intervenções ao longo do ano (em Março, quando tomou posse, e depois, por exemplo, em Setembro, Outubro, Novembro). E, também por isso, descreve e valida a leviandade que caracterizou os bastidores políticos nacionais em 2016. A de Marcelo, sobretudo, que passou um ano a ignorar os dois pilares que suportam essa “descrispação”.
Primeiro, a exaltação de uma
paz social que é, inequivocamente, artificial. Se hoje não há crispação é
porque a esquerda que apoia o governo detém o monopólio da contestação social.
Em 2016, deixou de haver sindicatos e associações mobilizados em protestos nas
ruas, simulando representar o povo mas defendendo apenas os seus próprios
interesses e a agenda do PCP. Tal como deixaram de ser ouvidos alarmismos
reproduzidos na comunicação social contra a austeridade e a destruição do
Estado Social – não que os problemas estejam todos resolvidos, mas porque, para
esses mesmos sindicatos e associações, deixou de haver benefício em empolá-los
no debate público.
Ou seja, para se segurar no poder, o PS comprou a paz social. E aceitou pagar o preço: sacrificou o interesse nacional para, em determinados sectores da vida pública, entregar a governação a interesses organizados – nomeadamente revertendo reformas e prejudicando o trabalho contínuo que ministros de várias cores políticas foram construindo. Enaltecer essa paz social, sob a forma de “descrispação”, desvalorizando o seu significado e custo para o país, é alinhar na farsa.
Ou seja, para se segurar no poder, o PS comprou a paz social. E aceitou pagar o preço: sacrificou o interesse nacional para, em determinados sectores da vida pública, entregar a governação a interesses organizados – nomeadamente revertendo reformas e prejudicando o trabalho contínuo que ministros de várias cores políticas foram construindo. Enaltecer essa paz social, sob a forma de “descrispação”, desvalorizando o seu significado e custo para o país, é alinhar na farsa.
O segundo pilar que sustenta a
“descrispação” está na recusa da legitimidade de um governo de direita.
Note-se que a “descrispação”
se refere, forçosamente, a um estado anterior de “crispação” – o governo
PSD-CDS liderado por Passos Coelho. E note-se também que ver uma vitória no
actual simulacro de paz social é, paralelamente, ver uma derrota num eventual
regresso da contestação. Ora, se amanhã houvesse eleições e PSD-CDS alcançassem
uma maioria absoluta que fizesse de Passos Coelho primeiro-ministro, alguém
duvida que a “crispação” voltaria instantaneamente? A “descrispação” não tem qualquer
relação com a vontade popular. E só existirá enquanto a direita estiver na
oposição e enquanto PCP e BE estiverem de mão dada com o poder. Que um
Presidente da República enalteça algo que deriva desta interpretação política é
leviano e irresponsável.
Vamos ao ponto. Uma coisa é
ser leviano e irresponsável. Outra coisa é ser tonto. E se Marcelo sempre se
ajustou à leviandade do comentário televisivo, tonto é que ele nunca foi.
Afinal, farsa ou não, a “descrispação” traz sossego e diminui as maçadas – e,
em Portugal, não ter chatices é meio caminho para a felicidade. Quantos
empresários não preferem aturar más leis ou a ausência de reformas desde que
lhes garantam uma certa paz social? Quantos pais não toleram más opções
educativas para os seus filhos desde que a educação não vire palco de greves e
de escolas fechadas? E quantos são os que aceitam cortes orçamentais nas suas
áreas profissionais (aqueles cortes que antes denunciavam) desde que lhes dêem
condições sociais para trabalhar? O ponto é este: os portugueses não gostam de
chatices. E, no final do dia, talvez lhes seja mais apetecível ter um governo
pior que assegure a paz, em vez de um governo melhor que só tenha de enfrentar
guerras.
É esse o poder da contestação
organizada – decidir pelo ruído quem deve e quem não deve governar. Um poder
ilegítimo que Marcelo legitimou ao longo de todo o ano e, agora, na viragem
para 2017, fazendo da “descrispação” uma conquista política. Afinal, não foi
apenas António Costa quem comprou a paz, Marcelo seguiu-lhe os passos. Não
sobram dúvidas que, como escreveu André Abrantes Amaral, 2016 foi o ano em que
ninguém quis saber. Sim, a “descrispação” pode ser uma treta. Mas é, pelos
vistos, uma treta apreciada por muita gente.
Título e Texto: Alexandre Homem Cristo, Observador, 9-1-2017
Título e Texto: Alexandre Homem Cristo, Observador, 9-1-2017
Marcações: JP
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-