José Manuel Fernandes
É sempre fácil encontrar bodes
expiatórios quando a realidade nos ultrapassa. Agora são as redes sociais,
vistas como culpadas de todos os populismos. É no que dá olhar demasiado para o
nosso umbigo.
A vitória dos populismos em
diferentes partidas deste nosso mundo não tem uma explicação fácil. Sobretudo
não tem antídoto seguro. Mas parece que já temos um bode expiatório: as redes
sociais e a tecnologia. Se lermos os textos mais recentes de Miguel Sousa Tavares (Expresso), José Pacheco Pereira e Paulo Rangel (ambos no Público) corremos o risco de
ficar com a percepção de que Donald Trump ganhou as eleições porque, de
repente, se descobriu uma coisa nova a que chamamos “pós-verdade”, ou que
estamos a ficar mais ignorantes (ou “novos ignorantes”) porque andamos com um
smartphone no bolso e estamos sempre consultá-lo, ou ainda que estes
instrumentos corroem o valor da liberdade em democracia.
Peço desculpa, mas acho que
seguindo por este caminho estamos de novo a tentar tapar o sol com uma peneira.
E que estamos, sobretudo, a ignorar a mensagem que os eleitores enviaram ao
votarem “errado” – pelo menos “errado” de acordo com a nossa perspectiva.
Começo recordando uma história
que já contei aqui no Observador, a de Lee Mavrakis, o mayor de Monessen, uma
pequena cidade da Pensilvânia que, depois de ter sido toda a vida um activo
eleitor democrata (e um sindicalista), acabou agora por optar por Trump. E
recordo-a por uma razão simples: a primeira coisa que Lee me disse quando
entrei no seu gabinete, em Julho do ano passado, foi que mandara retirar o
computador da sua secretária – o ecrã estava de resto virado contra uma parede
numa estante, abandonado e cheio de pó. O antigo operário siderúrgico não fazia
pois ideia do que era uma rede social, só utilizava o telemóvel para fazer
chamadas e não creio que tenha sido influenciado por qualquer das mentiras
sobre Hillary Clinton difundidas por um jovem búlgaro. Ele, pura e simplesmente,
sentia-se esquecido pelas elites de Washington e ignorado por um Presidente
Obama a quem enviara sucessivas cartas (não emails).
Esta história vale o que vale,
mas é uma entre muitas que a imprensa americana (e de todo o mundo) começou a
contar com mais detalhe depois da surpresa das eleições. Se quisermos perceber
onde é que os diferentes populismos encontraram audiência temos de perceber
quem votou pelo Brexit em vez de diabolizar os ingleses pobres; tal como temos
de compreender o sentido profundo da arrogância que
está por detrás da referência de Hillary aos “deploráveis” ou da forma como
Mateo Renzi quis impor a sua vontade aos italianos; de perceber que há bairros
inteiros em França (mas também noutros países europeus) onde os nacionais
sentem que não estão já no seu país; e de enfrentar sem dogmas a evidência de
que os cidadãos têm, um pouco por todo o lado, a percepção que já nem pelo voto
são senhores do seu destino.
As redes sociais e a tecnologia não criaram estas realidades. As redes
sociais não passaram de bestiais (no tempo em que ajudaram a eleger Obama ou
atraiam multidões para os comícios de Bernie Sanders) a bestas (só porque Trump
é um incontinente do Twitter). As ondas geradas pelas redes também não passaram
de boas demonstrações de cidadania (quando, por exemplo, procederam ao
linchamento de Isabel Jonet) a serem apenas uma “ditadura das massas” (quando
estão menos ao nosso gosto).
A “pós-verdade” também não
nasceu ontem. Antes dela houve o boato, e sabemos como este provocou motins e
até massacres (recordam-se da chacina dos judeus de Lisboa naquela que ficou
conhecido como a “matança da Páscoa de 1506”). Ou como levou a corridas aos bancos e ao crash das
bolsas. Por vezes boatos mal-intencionados, por vezes inocentes, quase sempre
mais difíceis de combater antes deste tempo de informação instantânea. Um pouco
de memória é sempre útil para colocarmos a realidade, mesmo que desagradável,
no seu contexto. A crueldade e a irracionalidade das multidões são parte da
nossa história e nunca deixámos nem deixaremos de as enfrentar. A Marcha sobre
Roma de Mussolini não precisou do Twitter (ou da televisão) para acontecer.
Mais: que sentido faz
indignarmo-nos com a “pós-verdade” neste tempo em que a política se faz
sobretudo de “narrativas” – um conceito introduzido em Portugal por José
Sócrates e ainda hoje reclamado pelas luminárias do PS. Ou que sentido faz
reclamar que o debate público só se faça de verdades certificadas quando os
mesmos factos (os números da dívida, ou do crescimento, ou do desemprego) podem
servir copos meio-cheios e copos meio vazios? O caminho tem de ser mais
inteligente e mais racional, pois não bastará pensar que tudo se resolverá com
um batalhão de “fact checkers” a trabalhar para o Facebook.
E aqui chegamos a um segundo
campo de problemas: o da mediação e validação da informação. Ou o da erosão do
papel do jornalismo como certificador do que é verdadeiro e do que é falso, ou
como definidor do que é importante e do que é dispensável. Mais uma vez é
necessário ter uma perspectiva de longo prazo: a crise da imprensa escrita é
muito anterior à explosão das redes sociais, começou até antes da vulgarização
da Internet (se bem que não possa ser dissociada desta última). A crise da
televisão generalista é mais recente, mas também é inelutável: num artigo recente Tony Blair referia com mágoa que,
quando foi eleito pela primeira vez, há 20 anos, o principal noticiário da BBC
era visto por 10 milhões de britânicos; agora é visto por apenas 2,5 milhões.
Podemos encontrar números semelhantes em todas as democracias avançadas: a
perda de audiência dos principais serviços noticiosos é uma regra um pouco por
todo o lado.
Por que é que isto aconteceu e
continua a acontecer? Em parte porque mudou a tecnologia e mudaram os hábitos.
O utilizador deixou de ser um espectador passivo, obrigado a seguir o
alinhamento escolhido pelos responsáveis dos telejornais – passou a escolher o
que quer ver e quando quer ver, ou o que quer ler e quando quer ler. Se já não
estamos no tempo em que Ford dizia que os clientes dos seus carros podiam
escolher a cor que quisessem desde que fosse preto, também já não estamos no
tempo do jornalista que comandava sozinho o “trânsito” da informação.
Em princípio, esta maior
capacidade escolha – e uma maior diversidade da oferta informativa, assim como
mais concorrência – deveriam ser notícias positivas. Por que estamos então
preocupados? A resposta tem de ser dura e directa: porque quando o público teve possibilidade de escolher, verificou-se
que tinha muito menos confiança nos jornalistas do que se pensava. Quando
se troca a leitura de jornais pela leitura de uma notícia partilhada no
Facebook não se está apenas a poupar o custo e o trabalho da ida à banca –
está-se a aceitar a recomendação de alguém das nossas relações, alguém mais
próximo de nós, alguém em quem confiamos ou com quem nos identificamos. Mas não
só: está-se também a virar as costas a um
jornalismo que muitas vezes nos diz muito pouco, um jornalismo que anda
demasiado à volta do seu umbigo, um jornalismo onde se desmerece as pessoas
comuns pois, na maioria das redações, todos elas não passam realmente de
“deploráveis”. Ou então de gente xenófoba. Ou homofóbica. Ou o que nos vier
à cabeça.
Muitos órgãos de informação
nos Estados Unidos reconheceram, depois de uma derrota que também foi sua – não
houve um único grande título que recomendasse o voto em Donald Trump –, que
também eles estavam como que “cortados” da realidade. O que se discutia nos
círculos de Washington, nos cafés do Soho em Nova Iorque ou nos restaurantes da
moda em Los Angeles nada tinha a ver com o que preocupava os munícipes de Lee
Mavrakis ou toda essa massa de eleitores a quem chamam “white trash”. Mas não sei se aprenderam a
lição e se arrependeram, pelo que continuo a ler nos sites “de referência”.
Esta evolução tem um terrível
efeito sobre a saúde da democracia, pois a democracia exige que todos possamos
falar com todos. Na Grécia antiga isso fazia-se na Ágora, nos tempos modernos
isso faz-se nos meios de comunicação de massa. Faz-se ou fazia-se: ao
desertarem, muitos eleitores começaram a falar apenas com aqueles que pensam da
mesma maneira, e aí sim as redes sociais podem ter o efeito perverso de
potenciar a fragmentação e atomização do debate público, num processo de
auto-guetização e auto-segregação. Só se fala com quem pensa como nós,
fecham-se os ouvidos a todos os outros argumentos.
Mas este é o momento final,
não o inicial. As redes sociais, como a televisão por cabo, como o Google, como
os smartphones, estão para ficar – como esteve para ficar a máquina a vapor no
dia em que começou a substituir o trabalho braçal e a aterrorizar os ludistas.
Como o Sol não se tapa com uma peneira, não se pára um mundo em mudança. Usa-se
é a nosso favor, como sempre sucedeu no passado com qualquer desenvolvimento
tecnológico: o aço com que se construíram os canhões da I Guerra Mundial foi
também o que permitiu os carris dos caminhos-de-ferro e o esqueleto dos
arranha-céus.
Algo, no entanto, temos de
reter: mais do que as novas ignorâncias dos cidadãos comuns, mais do que os
efeitos de manada das redes sociais, quem tem falhado são os que insistem em não ouvir os eleitores. Porque estes há muito que deram sinal de que
querem falar, pois estão zangados. E não se iludam: há mais problemas pela
frente, pois em 2017, pelo menos na Europa, todos estarão apenas empenhados em
esconder o lixo debaixo dos tapetes. O mais difícil ficará para depois, quando
for ainda mais difícil. E se formos a tempo
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
4-1-2017
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