Rui Ramos
Quem diria, no Outono de 2015,
que o governo minoritário do PS com o amparo parlamentar do PCP e do BE – a
“geringonça” – iria durar pelo menos três anos? Mas quem também diria, há um
ano, que estaríamos agora especular sobre se o próximo Orçamento será votado
pelo PSD? É este o fim da geringonça? Não, pelo contrário: é o seu esplendor.
No Outono de há três anos,
pouca gente percebeu o que era a geringonça. Muitos confundiram-na com uma
maioria de esquerda: uns imaginaram que o PS se teria finalmente rendido às
“políticas de esquerda”, tal como o BE e o PCP concebem essas políticas; outros
esperaram que o BE e o PCP, depois de
anos de “protesto”, se tivessem rendido ao princípio da “responsabilidade” de
governo, tal como o PS compreende essa responsabilidade. Ora, a verdade é que
não aconteceu nem uma coisa, nem outra. O PS manteve-se fiel a Bruxelas, como
não podia deixar de ser, num país financeiramente dependente do BCE: aumentou
os salários, mas esvaziou os serviços através de cativações – porque, como António
Costa admitiu, não se pode ter tudo. O BE e o PCP não mudaram de ideias:
votaram os orçamentos, mas o PCP organiza greves, o BE não desistiu de sentar
Vasco da Gama no tribunal de Nuremberga, e os dois não se cansam de negar o
estatuto de “esquerda” ao governo.
Perante esta aglomeração
indistinta, em que o oportunismo passa por pragmatismo, qualquer alternativa
estava condenada a parecer “ideológica”. De facto, a geringonça desagregou logo
a direita, com PSD e CDS a concorrer separados às autárquicas de Lisboa e do
Porto. Desde cedo, que a questão foi saber quem seria o primeiro a propor-se
como suplente da geringonça. Com Rui Rio, acabou por ser o PSD a dar o passo.
Ainda é possível que acabemos
por ver muito mais coisas. Mas já é claro no que consiste a geringonça. A
geringonça não é a maioria de esquerda. A geringonça é o regime, toda a
oligarquia, depois de fracassadas as ideias e liquidadas as expectativas, a
tentar salvar-se, agarrando-se ao Estado. A “Terceira via” do PS falhou em
2001, outra vez em 2011 e finalmente em 2015. O PCP e o BE não conseguiram
aproveitar a contestação ao Euro e à Troika. O PSD, com Passos Coelho, ganhou
as eleições que ninguém esperava que ganhasse em 2015, mas não conseguiu
governar e a derrota autárquica, em 2017, incutiu-lhe um estado de alma
semelhante à dos primeiros partidos da geringonça: deixou de acreditar em projetos
próprios, e convenceu-se também que a salvação estava em agarrar-se ao governo.
Daí a transformação do PSD com Rui Rio, de maior partido nacional e líder da
oposição, em quarto pedinte da geringonça.
A pouco e pouco, os partidos
do regime juntam-se. Não se entendem ideologicamente, porque nenhum deles mudou
de ideias: o PS continua na Terceira Via de António Guterres, o PCP e o BE
acreditam ainda numa ou outra variante da revolução soviética, e o PSD é tão
liberal como sempre foi. Mas tudo isso é irrelevante. Incompatíveis em termos
de valores, são perfeitamente encaixáveis, como as peças de um puzzle, em
termos de interesses: o PS representa um grupo de amigos e famílias que
governam desde 1995; o PCP tem os sindicatos da função pública; o BE apela à
classe média urbana das ciências, artes e comunicação social; o PSD, com Rui
Rio, não aspira a ser mais do que uma federação de municípios a norte de
Leiria. Como não haviam de entender-se, para partilhar o Estado entre as suas
clientelas? Porque é isso que está em causa.
A questão é saber se alguma
coisa no regime vai ficar de fora da geringonça. Melhor: se alguém vai querer
ficar de fora. Melhor ainda: se alguém consegue ficar de fora.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
10-7-2018
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