quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Viver e morrer habitualmente

João Pereira Coutinho

Infelizmente, as nossas tragédias têm cumprido dois figurinos. Podem ser “tragédias anunciadas” como na estrada de Borba – uma desgraça que várias autoridades sabiam que ia acontecer, sem, no entanto, mexerem um dedo para a evitar. Ou então tragédias marcadas pela sombra da incompetência, como nos incêndios de 2017

VIVEMOS EM PORTUGAL e temos saudades das tragédias limpas. Entendo por “tragédia limpa” um infortúnio sério sobre o qual o silêncio é a melhor resposta. Silêncio pelas vítimas, silêncio pelas famílias. Silêncio pelos caprichos da sorte.

Infelizmente, as nossas tragédias têm cumprido dois figurinos. Podem ser “tragédias anunciadas” como na estrada de Borba – uma desgraça que várias autoridades sabiam que ia acontecer, sem, no entanto, mexerem um dedo para a evitar. Ou então são tragédias indelevelmente marcadas pela sombra da incompetência, quem sabe da omissão criminosa, como nos incêndios de 2017 ou no helicóptero do INEM que se despenhou em Valongo.


Neste último caso, uma pessoa começa a raspar a superfície e descobre logo que há chamadas de emergência da Navegação Aérea de Portugal não atendidas, atrasos imperdoáveis nas buscas, acusações de irresponsabilidade entre bombeiros e Proteção Civil – e tudo isto nas primeiras 24 horas. Depois, quando finalmente o Governo anuncia o fatal “inquérito” – um expediente que absolve qualquer responsável de ter vergonha na cara e sair pela porta dos fundos – o País regressa ao seu torpor sonolento, até ser despertado por uma nova tragédia.

António Costa “virou a página”, sim, mas não foi da austeridade. Foi a página da responsabilidade política do Estado perante qualquer área que tutele. Antigamente, este desaparecimento do Estado das suas funções essenciais tinha um nome: era “neoliberalismo”, sempre qualificado como “selvagem”. Em 2018, é apenas uma forma de viver habitualmente – e de morrer habitualmente.
Título e Texto: João Pereira Coutinho, Sábado, nº 764, de 20 a 26 de dezembro de 2018
Digitação: JP

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