Alberto Gonçalves
Se, conforme proclama o Indicador Supremo
da Felicidade, os portugueses gastaram mais dinheiro no Natal, não é virtude de
Costa, mas defeito dos portugueses. E todos sabem que não nos restam muitos.
Foi a 1 de abril de 2017,
salvo o erro, que recebi o telefonema do sujeito. Eu estava no aeroporto de
Orlando, a ver uma pequena tempestade cancelar sucessivos voos para Nova
Iorque, e conhecia o sujeito de nome. Dias antes, o sujeito chegara a diretor,
sob ordens do diretor de facto, da revista para a qual eu escrevia há treze
anos. O telefonema começou com cumprimentos efusivos e terminou, um minuto
depois, com o meu afastamento da tal revista.
Por isto e por aquilo, não
fiquei espantado, ou demasiado aborrecido. Além de ser escusado, não me ocorreu
queixar-me, ou questionar o direito de empregadores, sejam proprietários ou
capatazes, despacharem empregados, sejam avençados ou “fixos”. Apenas me
ocorreu responder ao funcionário da Delta Airlines que, entretanto, me chamara
e, finalmente, apanhar um avião. Houve nuvens negras durante toda a viagem, mas
pairavam lá em baixo. Não voltei a pensar no sujeito, e só ocasionalmente
voltei a pensar nas consequências do meu breve contato com ele. A vida, ou lá o
que é, continua.
E continuou até 27 de dezembro
de 2018, quando pela primeira vez o Facebook me mostrou a ligação para um
artigo do sujeito, publicado nesse dia no site da referida revista. Segui a
ligação. Li o artigo. Cito pedaços: “António Costa vai entrar em 2019
com condições políticas invejáveis. Pode ser um ano de sonho. Termina a
legislatura com uma popularidade imbatível, pode ganhar as eleições com maioria
absoluta ou, no cenário menos bom, escolher o parceiro que quiser para uma nova
geringonça.”; “A economia permanece numa trajetória de recuperação e os
portugueses, como se tem visto nesta quadra natalícia, andam tão felizes nas
compras que não nutrem qualquer simpatia pelas profissões que protestam por via
da greve”; “(…) a já lendária lucidez de António Costa (…)”. O artigo, cuja
parte disponível citei quase na íntegra, não terminava aqui: o resto era
reservado a assinantes, coisa que não sou.
Sou, porém, um maluquinho por
contemplar as figuras a que alguns se prestam para ganhar o pão de cada dia.
Pelo que decidi procurar artigos anteriores do sujeito, que jamais lera. Valeu
a pena, e vale a pena insistir nas citações: “António Costa vai
acelerar para o seu grande objetivo que é ganhar com maioria absoluta. Por
isso, fez uma operação de remodelação e gestão política quase perfeita.”;
“Costa afinou a máquina e ela promete ser diabólica na corrida até à meta.
Remodelou a tempo para ganhar a sério.”; “(…) o pragmatismo e instinto político
de António Costa (…)”; “Os bons resultados da geringonça são de António Costa e
do PS”; “A vida de António Costa está cada vez mais fácil. O primeiro-ministro
é o pêndulo essencial da política de alianças governativas à esquerda e à
direita (…)”; “O primeiro-ministro sabe que, acidentes de percurso à parte, (…)
o vento sopra a seu favor. Os portugueses já acabaram 2017 com mais dinheiro no
bolso – que bem se viu nas compras de Natal – e vão continuar esse efeito em
2018.”; “Costa cometeu uns erros, disse uns disparates!? É certo que não foi um
exemplo de sensibilidade política e social, em certos momentos. Mas é o
timoneiro, tem uma enorme popularidade e é reconhecido como o homem certo no
lugar certo. Enquanto as contas andarem bem, ninguém o derruba do poleiro. (…)
Nas contas, não há político mais realista do que ele…”. Etc. Etc. Etc.
Não identifico o sujeito
porque não é preciso e porque não quero personalizar um “estilo” que, na
pobreza da linguagem e na curvatura das vértebras, é afinal coletivo e
praticamente o padrão-ouro dos comentadores pátrios. O facto de dormirem
sossegados é um rombo na indústria dos ansiolíticos. A fim de simular isenção,
salpicam pelos comentários críticas a ministros fugazes, lamentam determinadas
decisões governamentais ou a falta delas, desancam no “eng.” Sócrates sempre que
as diretivas mandam, brincam com o ocasional (e raríssimo e humano e perdoável)
“deslize” do primeiro-ministro para legitimar (eles, coitados, dizem
“credibilizar”) o resultado pretendido: a descarada propaganda do dr. Costa e
dos poderes que o dr. Costa representa.
É fascinante a jovialidade com
que se eleva a um estatuto próximo do génio político alguém que, sob qualquer
perspectiva, não passa de uma irrelevância manhosa. Removido o verniz que os
seus bajuladores inventaram, quem é o dr. Costa? No máximo, um veterano da
pequena intriga partidária, um especialista em tropeçar na verdade e na
gramática, um videirinho descarado, um rústico sem noção, o chefe oportuno de
um bando repulsivo à vista e à decência. Ou, na ponderada definição dos
devotos, “o timoneiro”.
Diga-se que o estado da nação
é exatamente o que se esperaria após três anos nas mãos de um timoneiro assim,
e o contraponto (tosse prolongada) de uma oposição assado. A bancarrota, já uma
tradição popular, volta a espreitar. Estradas, hospitais, justiça,
instituições, fronteiras, soberanias desmantelam-se a céu aberto. A forma do
debate público raia a demência, e o conteúdo fintou a demência há tempos. As
clientelas empanturram-se. As trapaças sucedem-se. O fisco sufoca tudo.
Protestos de duas dúzias são ameaçados por jagunços e vigiados por batalhões.
Fanáticos e burlões sobem a
“personalidades”. O ranço veste-se de progresso. Os vestígios da civilidade
fugiram apavorados. E este retrato de uma agonia certa é retocado pelos “media”
de serviço de modo a assemelhar-se a um caso de sucesso (juro). Numa imitação
fiel da lengalenga oficial e oficiosa, também nos “media” a mentira deixou de
ser um recurso para se tornar o processo. Uns e outros presumem a profunda
idiotia dos cidadãos. E a maioria dos cidadãos, alheia ao colapso do país e da
Europa que segura o país, tende a dar-lhes razão.
Se, conforme proclama o
Indicador Supremo da Felicidade, os portugueses gastaram mais dinheiro no
Natal, não é virtude de Costa, mas defeito dos portugueses. E um suspiro: todos
sabem que não nos restam muitos, embora ninguém queira saber. Enquanto lá fora
as “fake news” são uma praga, aqui são um bálsamo. Tenho saudades de
aeroportos.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
29-12-2018
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Por causa dos "editoriais" desse senhor – Eduardo Dâmaso, Diretor da revista Sábado –, particularmente um "editorial", que nem o BE escreveria, CONTRA o presidente Jair Bolsonaro, não renovei a minha assinatura. A revista, que assinei para beneficiar do crédito de milhas da TAP, era o último órgão da imprensa portuguesa que ainda lia, apressadamente.
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