Os tempos mudam, e custa a
alguns admitir a realidade nova. A verdade é que, tomando como exemplo os
imperadores, czares, reis e príncipes destronados, durante muito tempo achou-se
que os tumultos de rua eram essencialmente de esquerda.
Mas quando os regimes, no último século e meio, se tornaram essencialmente republicanos, passou a perceber-se que a desestabilização provocada pelos insurretos podia afinal ser antiesquerda, ou representar alguma coisa nunca vista.
Mas quando os regimes, no último século e meio, se tornaram essencialmente republicanos, passou a perceber-se que a desestabilização provocada pelos insurretos podia afinal ser antiesquerda, ou representar alguma coisa nunca vista.
De greves, paralizações e
bloqueios a favor do progresso, passamos das mesmas contra os esquecidos pelo
progresso.
Da contestação dos privilégios
da nobreza e do clero, chegamos ao zurzir da indiferença das elites laicas.
Publicamente, mas tinha um pensamento íntimo.
O autor de todos os movimentos
é o povo. Mas o que é o povo?
Nalguns momentos históricos
desde 1945, povo era o conjunto de cidadãos que se exprimia pelo voto. Fora dos
movimentos do sufrágio, eclipsava-se, e tomava o lugar dele o conjunto de
representantes da nação, da pátria, da república, da comunidade, etc.
Em diversos episódios
conhecidos, o povo passou a ser a maioria silenciosa: aquela que trabalhava e
não queria saber de política. Aquela que se abstinha publicamente, mas tinha um
pensamento íntimo.
Também houve tempos em que o
povo era só um conjunto de eleitores esclarecidos. Os outros votavam
manipulados ou mal informados.
Durante o PREC português, o
povo, para alguns, o número: “Se isto não é povo, onde está o povo?” E em todos
os países parece relevante o Estado contar os números de manifestantes, mesmo a
seguir a um protesto dito ilegítimo.
Noutras alturas, o povo é
representado por classes profissionais, regiões geográficas, etnias ou até
desqualificados ou inqualificáveis, como as donas de casa que batiam panelas
contra Allende.
A verdade é que não há
populismo sem povo. Aquele alimenta-se deste, seja em imagem, seja em
realidade, seja em símbolo, seja em palavras, seja numa amostra.
Como a esquerda se aburguesou
e passou a representar interesses especiais, às vezes minoritários, e se tornou
assim, segundo muitos observadores, centrista, a rua ficou livre para os vários
povos e para os populismos.
Dizer que a esquerda e o
centro não compreenderam o problema não significa que os novos populismos sejam
de direita.
Muitas vezes trata-se de
movimentos espontâneos de reunião de diversos descontentamentos, outras vezes
partem de revolta sobre um assunto único (imigração, educação, custo de vida,
impostos), outras ainda representam problemas mais profundos e menos
definíveis, como as correntes que afirmam a identidade nacional, como
resistência à supressão de línguas, costumes, ritos e símbolos.
Às vezes há revoltas contra
novas proibições, outras vezes contra novas obrigações.
Temos motins contra a ausência
do Estado (por exemplo, na segurança), e manifestações contra a sua excessiva
presença (outra vez a questão fiscal e regulatória).
O que une estes fenômenos não
é a ideologia. É antes o facto de serem militantes, prontos e capazes de
mobilização apreciável, persistentes (não se dissolvem à primeira carga
policial ou decreto apaziguador), mutantes (passando de causa em causa, da
contestação do episódico à discussão de tudo) e imprevisíveis: sabe-se de onde
partem, nunca se conhece aonde chegam. Refletem, no fundo, a mudança de humor e
o percurso dos seus membros.
A sua força cria fatos
consumados, independentemente da justeza das causas e reivindicações. Quem se
recorda do bloqueio da ponte sobre o Tejo, a propósito das portagens, lembrará
também as consequências do movimento sobre o crepúsculo cavaquista.
É isso que assusta certos
liberais: o fato de se tratar de política não controlável pelos partidos,
impermeável aos mesmos, mas capaz de os dissolver.
O que obriga a novas
respostas, que governantes, regimes e Estados podem ainda não estar preparados
para pensar, e muito menos para dar.
Título e Texto: Nuno Rogeiro, Sábado, nº 763, de 13 a
19 de dezembro de 2018
Digitação: JP
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-