Rafael Marques de Morais
Em vésperas do Natal, recebi um presente
especial – um cabrito – acompanhado de um enorme saco de batatas. Inferi logo
tratar-se de uma sugestão para a ceia natalícia: caldeirada de cabrito.
Sou vegano. De repente, coube-me a responsabilidade de decidir sobre a vida e a morte deste cabrito, proveniente de Malanje. Tinha as quatro patas amarradas pela mesma corda, que lhe passava pelo pescoço, ao ponto de lhe causarem feridas. Estava tão assustado.
Por alguma razão inexplicável,
sempre pensei em ter um cabrito como animal de estimação. Este tem o tamanho
ideal. Mas a sorte do cabrito tornou-se o meu dilema.
O pequeno animal é de uma
voracidade insaciável. Está sempre a comer. Onde o amarrei, no quintal, já se
foi todo o verde. Em casa, por incúria minha, são poucas as plantas. E agora, o
cabrito a quem concedi a liberdade de circular à vontade quer comê-las todas.
Tenho-o alimentado com bananas verdes, e até as batatas que serviriam para o
prato em que ele seria o ingrediente principal foram parar ao seu bucho.
Depois há o problema das
caganitas e do cheiro. O Dédé sugeriu castrá-lo, para reduzir o mau cheiro. Não
faço a mínima ideia se esta é uma sugestão científica ou um mito popular. O
Dédé parece ser o único amigo, na presença do cabrito, a vê-lo como um animal
de estimação e a procurar uma solução que o salve.
Um pastor amigo explicou-me,
depois, que o cabrito exala um odor pungente como forma de atrair fêmeas. Ou
seja, quanto mais malcheiroso, mais sexy se torna o macho. Parece ser esta a
tese. Entretanto, observou os chifres do cabrito e disse-me que era já velho,
sugerindo uma forma de tornar a sua carne mais suculenta: eu devia queimar-lhe
o pelo, e em seguida cozê-lo ou assá-lo com a pele. “Tem mais gosto assim.”
Manifestei o meu desânimo. Então, o bom pastor ofereceu a quinta do seu pai
como santuário para o meu cabrito.
Mal tive tempo de pensar no
assunto, porque os meus amáveis conterrâneos entretiveram-me com uma prolongada
discussão filosófica sobre o papel das oferendas na cultura dos Njingas, em
Malanje, e as fabulações sobre o cabrito.
Se bem entendi, a questão central da discussão era demover-me da ideia de que se tratava de uma forma de agradecimento pelo meu contributo à resolução de uma questão humanitária. Dos vários provérbios partilhados para aflorar a cultura dos Njingas, retive então, como interpretação académica, a ideia segundo a qual devemos evoluir alicerçados nos bons hábitos e costumes legados pelos nossos antepassados, seguindo sempre o farol da solidariedade e da irmandade. Em quimbundo soa profundo e melhor.
Obviamente, o cabrito faz
parte do imaginário angolano sobre a realidade política. É bem conhecido o
provérbio segundo o qual o cabrito come onde está amarrado. Este provérbio é
mal interpretado pelos nossos políticos e servidores públicos como sendo um
apelo popular ao roubo insaciável dos bens públicos nos lugares por si
ocupados.
Todavia, a rapacidade do
cabrito apenas se apresenta como tal fora do seu habitat natural, como o meu
quintal de cimento, onde o verde serve para embelezar. Pelo contrário, a
voracidade dos políticos e servidores públicos é criminosa, e milhares de
angolanos já perderam a vida por conta daqueles que rapam os cofres do Estado,
delapidam o património público e privam todo um povo de recursos indispensáveis
para a sua saúde, educação, emprego condigno e consequente bem-estar. Então,
não pode haver comparação entre os nossos políticos e os cabritos.
Agora diz-se que esses gatunos
insaciáveis são marimbondos. Esses insetos ferram, são perigosos, mas nem por
isso devem servir de metáfora animal para os nossos servidores políticos de má
fama. Gatuno é gatuno e basta.
Ocorreu-me, no entanto, uma
imagem dissociada de qualquer interesse filosófico, mas demonstrativa da
brutalidade dos homens. Há dias, durante a minha visita ao Lobito, uma carrinha
transportava dezenas de cabritos, com uns cinco ou seis homens espalhados entre
os animais, a chicotearem-nos constantemente. Indignado, perguntei aos meus
companheiros de viagem, locais, sobre aquela cena. Riram-se todos. Um deles
explicou-me que os cabritos continuariam a ser sovados ao longo das oito ou
nove horas de viagem até Luanda. Alguns transeuntes riram-se também da minha
expressão de incredulidade.
No dia seguinte, já a caminho
do Bocoio, parámos numas bombas de combustível, onde encontrámos outra carrinha
apinhada de cabritos. Enquanto o motorista a abastecia de combustível, na
carroçaria, os homens continuavam a chicotear os cabritos. Perguntei-lhes então
sobre o motivo daquela violência. “É para os cabritos se manterem de pé e não
adormecerem. Se não, morrem durante a viagem.” Riram-se também. A crueldade
estimula o riso em muitos angolanos.
Na palestra sobre os direitos
humanos, na comuna do Monte Belo, falei também da crueldade contra os cabritos
e todos se riram, com naturalidade. Naquela comuna, a intolerância política
recente levou à queima de casas e muita violência entre partidários do MPLA e da
UNITA. O assunto da tortura dos cabritos parecia irrelevante, uma vez que estes
se destinavam ao abate.
Já na cidade de Benguela, em
conversa com a minha amiga Filó, falei-lhe da crueldade contra os cabritos e de
como abordaria novamente o assunto na palestra do dia seguinte. Ela contou-me
então do aumento da violência doméstica contra mulheres e crianças, bem como da
pedofilia, crimes que continuam a não merecer a devida atenção pública.
Compreendi e acedi à sua
sugestão, decidindo omitir na palestra seguinte o direito dos animais e abordar
o das mulheres e das crianças. Antes, porém, perguntei-lhe onde está a
solidariedade entre as mulheres na defesa dos seus direitos, sobretudo das mais
vulneráveis?
Enquanto escrevia sobre o meu
cabrito – agora batizado de Cabrito Benjamim –, distraí-me pelo meio a
responder a umas mensagens no Facebook. Vi então, com dez dias de atraso, um
grito de socorro de um cidadão, com imagens chocantes de uma mulher brutalmente
espancada pelo marido, das Forças Armadas Angolanas (FAA), a qual foi,
entretanto, internada no Hospital Militar do Lubango, na Huíla. “Fez-se queixa
à polícia e até este preciso momento nada foi feito. Por favor, o indivíduo
continua à solta e a fazer ameaças. A senhora corre sérios riscos de vida”,
escreveu o denunciante, partilhando os seus contatos e tratando-me por
“defensor do povo”. Talvez algum representante do povo, alguma entidade oficial
leia esta nota e faça um esclarecimento público.
São inúmeras as denúncias que
recebo regularmente, para as quais não tenho solução, porque sou apenas um
cidadão empenhado e sem qualquer suporte organizacional. Infelizmente, muitos
acreditam que tenho ou represento uma instituição, com alguns poderes secretos
e com meios para os ajudar.
Na verdade, nem ao meu dilema
sobre o destino do cabrito consigo dar solução.
Viva o Cabrito Benjamim!
Título, Imagem e Texto: Rafael Marques de Morais, Maka Angola,
28-12-2018
Eu recebí um bode. Veja que loucura.
ResponderExcluirAbraços
Aparecido Raimundo de Souza, de Shangri-Lá, um lugar perdido no meio do nada.