Ângela Marques
Era a segunda manifestação de ódio
natalício: "As luzes irritam-me, o amigo secreto irrita-me, as ruas cheias
irritam-me."
Não é que ele seja o Grinch -
aliás, tem uma pele ótima, um coração vermelho e branco e hábitos de boa gente
(sabem como é? Nunca estaciona em lugares reservados, dá sempre a vez no
autocarro e em 99% dos casos deixa a última fatia de pizza para o próximo), mas
tinha passado a tarde a dizer que tudo no Natal o irritava.
Quando o disse a primeira vez
achei que fosse piada: "Alguém devia cancelar o Natal." Ri-me e olhei
para outro lado. À segunda manifestação de ódio natalício devo ter feito uma
inadvertida cara de "conta-me mais" porque ele prosseguiu: "As
luzes irritam-me, o amigo secreto irrita-me, as ruas cheias irritam-me."
Conheço-o bem e há muito, mas
naquele momento senti que o caso merecia uma psicoterapia de bolso. "De um
dia para o outro?", perguntei. Ele percebeu que eu estava a jogar a
cartada da infância, que me preparava um xeque-mate. Eu ia dizer-lhe o óbvio,
que a vida é muito isto: crescer e desenvolver mais células cínicas do que
ingênuas. Ia, provavelmente, dizer-lhe o que ele não queria ouvir: o Benjamin
Button não existe. E ia terminar com a tirada menos terapêutica da terapia
quando não a pedimos: "É normal que te sintas assim."
Esperto, ele mudou de
conversa. Horas depois, a fazer tempo em frente a um jogo de futebol, ele
disse, como quem sofre uma falta desnecessária: "Ainda não comprei um
único presente." Menti, disse-lhe que a mim também me faltavam muitos,
acreditando que isso o faria sentir melhor, mas nada - a única coisa que o
faria sentir-se melhor seria poder saltar para janeiro.
Foi num semáforo, outra hora
depois, que as minhas preocupações se desembrulharam. Parados num vermelho,
vimos uma mulher atravessar na passadeira. Ia carregada, debaixo de chuva. Nas
mãos levava duas caixas que eu não consegui identificar. "Que grandes
prendas, já viste?", disse ele. Olhei melhor: duas cidades de Playmobil.
"É, alguém vai ter um grande Natal", concordei. E pelo canto do olho,
vi: tanto ele quanto o semáforo estavam verdes - só que ele era de inveja.
Título e Texto: Ângela Marques, SÁBADO,
nº 764, de 20 a 26 de dezembro de 2018
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