Alberto
Gonçalves
A que propósito os portugueses se
envergonhariam do prof. Marcelo se se podem envergonhar do sr. Trump e do sr.
Bolsonaro? A que propósito lamentariam os mortos do SNS se há inúmeros
sobreviventes?
Marquês do Pombal, Lisboa, 21-12-2018, foto: JP |
2h25 – Adormeço.
5h20 – Acordo e
faço café.
5h30 – Acedo ao
manifesto dos coletes amarelos. Infelizmente, a internet destruiu-nos a
capacidade de concentração e, logo ao fim de dois parágrafos, dou por mim a
desistir da leitura para comprar sapatos num site de vendas. Vale que não
preciso de ler o manifesto para compreender no que consiste o movimento. Aos
poucos, e sempre entre sites de sapatos, relógios e peúgas desportivas, vou
espreitando o que inúmeras pessoas esclarecidas disseram acerca dos prometidos
tumultos. O sr. Arménio da CGTP, por exemplo, uma personalidade inegavelmente
equilibrada, revela que a coisa não passa de um bando de arruaceiros que
“querem instabilidade para dar força à extrema-direita”. Ai, os marotos. Deve a
isto que o dr. Ferro Rodrigues, sujeito impecavelmente asseado, chama o “mau
cheiro populista que sopra da Europa”. Ainda que figurativo, o fedor
incomoda-me. Volto a adormecer.
7h00 – A hora
marcada para o início do tsunami amarelo. Continuo a dormir.
12h15 – Acordo às
12h15. Vejo que são 12h15 e entro em pânico: decerto a vaga de extrema-direita
já levou tudo à frente e as comunicações caíram. As comunicações não caíram. No
Facebook, circula uma fotografia, tirada não sei onde, em que duas dúzias de
coletes amarelos se veem rodeados por uns cinquenta polícias (se descobrisse as
armas de Tancos, o Exército não faltaria). Achei o policiamento escasso e
preocupante: a fúria fascista exige, no mínimo, uma proporção de 5 para 1 e,
idealmente, 5 para 0. Num desses programas de “debate” em que, graças a Deus,
todos concordam, um comentador isento e avençado do regime pedira “ação direta”,
leia-se bordoada na ralé.
12h35 – Ligo o
televisor, que não acolhe canais “tradicionais” há meses. A RTP faz um “direto”
dos protestos. Por acaso, são na Catalunha. A TVI 24 mostra os manifestantes no
Marquês de Lisboa. Gritam “O povo unido jamais será vencido”, ou seja, a
extrema-direita recorre a slogans dos comunistas chilenos, blasfêmia que prova
a ignorância cega dessa gente. A repórter fala em “tensão” e “confusão”. Há
notícias de três detidos. Aparentemente, não sobraram muitos mais.
13h00 – Leio
algures que velhos organizadores de rebeliões boas (“buzinão”, “geração à
rasca”) abominam a “falta de politização” dos coletes amarelos (rebelião má),
que não traduzem uma agitação “orgânica” e desejam abolir os partidos, os
partidos que, coitados, tanto se esforçam pelo bem comum e por alguns bens
incomuns. A extrema-direita, sete ou oito biltres, tem imensa lata. Na CMTV,
uma jovem manifestante critica “a porcaria que tomou conta do país”. No sofá, peço
retoricamente à sirigaita que dobre a língua quando se referir a uma nação que
já ocupa o 16º posto no PIB per capita da zona euro e, não esquecer, é a 21ª
economia com maior crescimento na UE. E isto antes de as forças progressistas
que nos governam acabarem de enxotar o que resta do investimento estrangeiro e
imperialista.
13h28 – Em Faro,
20 ou 30 insurrectos (os demais, informa o repórter, foram almoçar) vagueiam
numa rotunda. Erguem cartazes contra a corrupção. Corrupção? O prof. Freitas,
personalidade inapelavelmente digna, veio há dias assegurar a honestidade do
ex-banqueiro Salgado. E o dr. Pinho aparece agora na TVI a assegurar a
inocência do dr. Pinho nos “casos” (fictícios) EDP e BES. Corrupção? Só
se for a das “toupeiras” do Benfica ou não sei quê, assunto que, na prioridade
dos canais, sucede à devastação populista que assola Portugal.
13h30 – O
primeiro-ministro deseja que os protestos continuem a correr com
“tranquilidade”. O dr. Costa padece de excessiva tolerância. Em paragens
completamente democráticas, como em Cuba, na Coreia do Norte, na Venezuela e na
saudosa comuna de Jonestown, não há resmungos: há a gratidão dos súbditos
perante líderes virtuosos. Apesar de a maioria dos portugueses ser grata, e
proceder com respeito e juizinho, pairam por aí “criminosos e infratores”
(palavras da radiosa ministra da Saúde) que se queixam de barriga cheia,
desafiam o poder e fomentam desavenças. As cadeias servem para quê, afinal?
Imito (cruz, credo) os coletes amarelos e parto para almoço, com oração prévia
a louvar os senhores que nos tutelam.
15h00 – Regresso à
vigilância. Nas televisões há azáfama e excitação. Assusto-me, convencido de
que a extrema-direita adotou a luta armada e desatou a rebentar com
propriedade sortida. Imagino helicópteros do INEM a cuidarem do resgate de
inocentes, certos de que cada despenhamento abrirá concursos de apuramento da
verdade, custe o que custar. À cautela, consulto preços de voos para Caracas
(1.026€). Não concluo a transação porque descubro a tempo que o rebuliço
televisivo se prende com o Benfica, prestes a perceber se é, ou não é,
corrupto. Respiro de alívio.
16h23 – Noto que,
a bem da estabilidade, os coletes amarelos sumiram da atualidade noticiosa, com
excepção do vídeo em que um PSP despe o colete (de cor distinta) para insultar
e oferecer porrada a uns idosos extremistas. Aquele coração mole não os abateu
ali, e foi pena.
17h10 – Volto às
televisões e aprendo que, à semelhança do dr. Salgado, do dr. Pinho e outros
enormes vultos, o Benfica é igualmente inocente. Ao que tudo indica, a
extrema-direita bateu em retirada de vez (numa carrinha de nove lugares).
17h15 – Sem querer
comentar os coletes amarelos, Sua Excelência, o Presidente da República comenta
os coletes amarelos: “Os portugueses não trocam a segurança da democracia pelo
aventureirismo de experiências marginais e anti-sistêmicas”. Pois não. A que
propósito os portugueses trocariam? A que propósito os portugueses reclamariam
das estradas que se esfarelam se têm estradas que continuam inteiras? A que
propósito os portugueses lamentariam os mortos do SNS se há inúmeros
sobreviventes? A que propósito os portugueses arrasariam à paulada a Proteção
Civil que não auxilia nos desastres se esta nos aconselha a vestir agasalhos no
Inverno? A que propósito os portugueses chorariam o dinheiro que o Estado lhes
tira se podem celebrar o dinheiro que o Estado lhes permite reter? A que
propósito os portugueses se envergonhariam do prof. Marcelo se se podem
envergonhar do sr. Trump e do sr. Bolsonaro? A que propósito os portugueses
protestariam uma situação que é a cara chapada deles próprios? Quanto à
liberdade, os portugueses são livres – de obedecer. E quase todos obedecem com
gosto a quem os protege do mundo, incluindo das hordas de extrema-direita. O
fascismo não passará. Aqui, aliás, não passa nada.
21h10 – Cruzo-me
na estrada com um ajuntamento de coletes amarelos. Sinto um nó na garganta.
Depressa constato tratar-se de um acidente rodoviário. Fico contente.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
22-12-2018
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