Helena Matos
O PR comenta os descarrilamentos dos
eléctricos. Os hospitais públicos recusam doentes. Saída para a crise? Adotar
uma coelha selvagem e também um ex-criador de vacas reconvertido
energeticamente.
O tiroteio voltou a eclodir e
a matar. Desta vez foi num mercado de Natal, em Estrasburgo. A cada atentado
terrorista temos uma espécie de guião: quem começa por matar é o tiroteio.
Depois admite-se que alguém
terá segurado a arma. Em seguida temos um razoável compasso de espera até que
se avançam os elementos que confirmam o que já se suspeitava: o autor do
atentado é muçulmano e fez questão de o sublinhar, no momento em que matava.
O Estado Islâmico também
celebra a mortandade, mas, segundo o novo mantra jornalístico, não estamos
perante um verdadeiro terrorista islâmico. A questão do “verdadeiro terrorista
islâmico” está a tornar-se uma espécie de alargamento do conceito de
denominação de origem dos vinhos e enchidos àqueles que, além da infelicidade
de não consumirem os produtos atrás citados, passam à prática o seu desejo de matar
em nome de Alá. Por mais que o terrorista islâmico grite que “Alá é grande!” enquanto
dispara sobre os desgraçados que se cruzam no seu caminho temos de evitar a
expressão “terrorista islâmico”.
Por fim, mas não menos
importante, com 29 anos e 27 processos judiciais em França e na Alemanha,
Chérif Chekatt classificado como “S”, ou seja, como perigoso para a
segurança da França, estava, contudo, em liberdade. Como é que isso é possível?
O enquadramento legal na UE não está feito para responder ao terrorismo: mesmo
com ficha “S”, um estrangeiro que tenha conseguido a nacionalidade
francesa dificilmente pode sequer ser expulso para o seu país de origem.
Como tantos outros presos de
delito comum Chérif Chekatt ter-se-á radicalizado ainda mais numa daquelas prisões em que quem manda são os fundamentalistas.
Como de costume acenderam-se
velas e fizeram-se as declarações piedosas do costume sobre as vítimas de mais
este incidente. Até que um novo tiroteio volte a eclodir e a matar voltaremos a
ignorar o assunto.
Quarta-feira, 12.
Um doente com uma lesão grave
numa mão, decorrente de um acidente de trabalho com uma rebarbadora, foi
enviado do hospital de Setúbal para o hospital de São José, onde deu entrada
cerca das 18h. No Hospital São José estava avariado o equipamento necessário à
cirurgia e foi decidida a transferência do doente “para outra instituição com
capacidade para a intervenção”.
O Hospital de S. José tenta
transferir o doente para Santa Maria. Mas Santa Maria recusou. Ou melhor
dizendo, não o recusou, mas também não o recebeu. Como explica a sua
administração, Santa Maria nega ter recusado o doente, simplesmente não o conseguiu atender porque estão “a atravessar um período que não é de funcionamento normal”. (Traduzindo, os enfermeiros estão em greve).
O hospital de S. José tentou de novo transferir o doente, agora para S.
Francisco Xavier mas esta unidade tinha uma intervenção a decorrer e não pôde
também receber o doente. Pelas 21h, ou seja, três horas depois de o doente ter
dado entrada em S. José, chega um sim: o serviço de cirurgia plástica de
Vila Nova de Gaia aceitou receber o doente. Pelas 22h35 foi
determinada a transferência do doente para Gaia. Às sete horas da manhã do dia
seguinte o doente acabou finalmente por entrar no bloco operatório em Gaia.
… É isto: tornamo-nos reféns
do Estado! A verba disponível vai para as suas corporações e a cada dia que
passa essas corporações reforçam o seu poder através do monopólio da prestação
de serviços: este homem não poderia ter sido operado num hospital privado de
Lisboa? Aliás, para lá do sofrimento a que foi sujeito nesta longa espera, não
se gastou muito mais dinheiro ao SNS levando-o para Gaia? Quem disse que o SNS
implica sermos tratados num hospital público e não naquele que melhor se ajusta
naquele caso?
O que está em causa na
perseguição aos privados na área da Saúde (tal como na da Educação) é a
transformação dos utentes em escudos humanos nas guerras sindicais. Logo, ou se
põe fim a este entendimento de que o SNS presta serviços exclusivamente nos
hospitais públicos ou, recusados de hospital em hospital, acabaremos a dar a
volta a Portugal para sermos atendidos.
E no fim, ainda teremos de
ouvir que não fomos recusados simplesmente, como explicou a administração do
Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, que integra o Santa Maria, “a avaliação feita foi essa e o doente foi tratado com o que de melhor há no Serviço Nacional de Saúde (SNS)” Imagine-se onde
teria acabado o doente se tivesse sido tratado com o pior! Quiçá na Venezuela!
Quinta-feira, 13.
O PAN
apresentou Francisco Guerreiro como seu cabeça de lista às próximas
eleições europeias. Escreve o PAN sobre o seu candidato: “Atualmente reside em Cascais, é casado e tem duas filhas uma das quais nascerá, estima-se,
a 5 de março. A família é também composta por dois gatos (casal) e uma coelha
selvagem, todos adotados. O seu hóbi centra-se na leitura e na recolha de lixo,
nomeadamente em florestas e nas praias nacionais.”
Convenhamos que o comunicado
deve ter sido redigido pelos “dois gatos (casal)” (curioso este detalhe
informativo sobre a conjugalidade dos gatos, mas convém não aplicar a
heteronormatividade aos felinos: estes constituirão um casal hétero ou
homo?) e pela “coelha selvagem adotada” seja isso o que for do ponto de vista
da coelha (se é coelha não é adotada porque adotadas são as crianças, e se é
selvagem o seu lugar não é ao pé das pessoas) pois não só não se percebe
se Francisco Guerreiro lê nas florestas e apanha lixo nas praias, o
contrário ou nada disso.
Mais misteriosamente ainda
sabemos que uma das filhas nascerá “estima-se, a 5 de março”, mas ficamos sem
saber se a outra filha já nasceu ou se ainda não tem data estimada para o
nascimento. Convém, contudo, que não nos deixemos iludir pela ignorância e
apalhaçamento deste tipo de prosas, pois aquilo que delas sobressai é uma visão
arrogantemente urbana da sociedade.
Esta elite urbana, os
urbanitas, chamam-lhe os espanhóis, de que o PAN representa o lado mais
histriónico, está a perseguir o mundo rural, para o efeito cada vez mais
apresentado como ignorante.
Não por acaso as vacas
substituíram os cafés no discurso do Portugal atrasado que o progressismo vai
combater: nos governos Sócrates o então responsável pela ASAE anunciava o fim
de metade dos cafés “por não cumprirem a legislação comunitária ou por não
terem viabilidade económica”.
Agora é o ministro do Ambiente
e da Transição Energética (só o nome deste ministério é um programa!) a
declarar necessária uma redução entre 25 a 50 por cento de bovinos para
“descarbonizar o país”.
Em conclusão, ou se metem
os urbanitas na ordem ou o mundo rural, o tal para que os urbanitas aprovam
tantos planos de apoio e repovoamento, vai acabar a ser alvo de campanhas de
adopção do tipo “Adote uma coelha selvagem e também um ex-criador de vacas
agora reconvertido energeticamente à neutralidade carbónica.” Vai ser um
sucesso. Em Lisboa, claro.
Sexta-feira, 14.
Um eléctrico da Carris
descarrilou na zona da Lapa, em Lisboa, causando 28 feridos ligeiros. O facto
em qualquer outro lugar do mundo seria da competência dos técnicos de
transportes e da responsabilidade da empresa ou instituição que gere esses
transportes. Em Portugal não.
De imediato, vindo desse local
misterioso onde parece estar em estado de vigília constante à espera de um
facto para comentar, surgiu o Presidente da República e logo desatou a
falar naquele estilo “assim e o seu contrário”: “Felizmente houve uma capacidade de resposta imediata e muito eficiente e o número de pessoas que já foi resgatado é muito superior àquelas que falta desencarcerar”.
Continuando neste registo de “explicador para tontos” o Presidente da República acrescentou ou minguou que no caso vai dar ao mesmo: “Vamos esperar, a ver se o saldo global é um saldo que não tenha vítimas que não sejam feridos”, “Estão em curso ainda muitas diligências, primeiro em relação ao número de pessoas que estão a ser desencarceradas”.
Continuando neste registo de “explicador para tontos” o Presidente da República acrescentou ou minguou que no caso vai dar ao mesmo: “Vamos esperar, a ver se o saldo global é um saldo que não tenha vítimas que não sejam feridos”, “Estão em curso ainda muitas diligências, primeiro em relação ao número de pessoas que estão a ser desencarceradas”.
A esta intervenção efetivamente
esclarecedora juntou-se a decisão da Junta de Freguesia da Estrela de garantir
apoio psicológico aos sinistrados e suas famílias. Perante tanta palavra do PR
e iniciativa da junta, o que disse o presidente da CML que desde há dois anos
tem a tutela da Carris? Nada.
O que explicou o vereador
Miguel Feliciano Gaspar que tem os pelouros da Mobilidade e Segurança? Nada.
Finalmente, a Carris, empresa
responsável pelo eléctrico, anunciou laconicamente que vai abrir um “inquérito
minucioso” para apurar quais as razões que levaram ao descarrilamento. Nem sei
se teremos tempo para ler tanto inquérito; assim que me recorde temos a leitura
prometida e adiada do inquérito sobre as “armas roubadas/afinal não
roubadas/talvez desviadas/quiçá devolvidas” de Tancos mais o inquérito ao desvio
de meios corrido em 2017 nos fogos de Mação. Mas parafraseando o nosso
Presidente da República: vamos esperar pelo desencarceramento dos inquéritos.
Em resumo, Portugal é um país
a salvo do populismo. Ou melhor dizendo, um país em que os populistas que nos
governam conseguem não ser contestados pelos populistas na rua.
Título e Texto: Helena Matos, Observador,
16-12-2018
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