José
Manuel Fernandes
De repente Costa omitiu a palavra-fetiche:
austeridade. E até descobriu que passámos "anos difíceis". É um sinal
de que o blá-blá-blá da "reposição de rendimentos" se tornou a bomba-relógio
da geringonça.
Entre um filhó e um cálice de
vinho do Porto, é possível que alguns portugueses até se tenham engasgado. Ora
ali estava ele, em pose quase humilde, a falar dos seus sucessos – poderia lá
deixar de fazê-lo? –, mas ao mesmo tempo a alertar para o risco das ilusões. O
ano passado, por causa da tragédia dos incêndios, também tivera de se
apresentar pelo Natal sem a habitual arrogância, pelo que a novidade da sua
modéstia não era coisa de monta, algumas das frases que se iam ouvindo até eram
quase iguais, nada parecia justificar que se interrompesse a refeição.
Como? “Anos difíceis?” Então
onde foi parar a austeridade? Continua? Ou afinal nunca existiu?
O primeiro-ministro não é dado
a grandes inovações retóricas – bem pelo contrário, é mais comum ser enfadonho
na repetição do mesmo cassete – e há quatro anos que lhe ouvíamos o mantra do
“virar a página da austeridade”. Fazer a agulha para “anos difíceis”, uma
fórmula muitas vezes preferida pelos que tiveram de aguentar o barco quando os
tempos eram mesmo tempestuosos – esses tais “anos difíceis” –, é uma inflexão
que trai um estado de espírito pois a humildade não é só pose, é também alguma
inquietação.
Creio que António Costa, como
de resto todos nós, não acreditou que a geringonça durasse toda a legislatura.
Se tivesse acreditado tinha sido mais prudente e menos inventivo nos orçamentos
que fez os seus parceiros aprovar. É que se à primeira qualquer cai, à segunda
só cai quem quer, à terceira quem insiste e à quarta só mesmo quem não tem
alternativa – e foi isso que se passou com estes sucessivos Orçamentos do
Estado que, de acordo com a avaliação do Conselho de Finanças Públicas, se
revelaram documentos mais fictícios do que reais (eu chamar-lhes-ia mesmo
mentirosos), já que os deputados aprovavam uma coisa no Parlamento e depois o
Governo executava outra, com gigantesco sacrifício do investimento e dos
serviços públicos.
Durante algum tempo foi
possível ir disfarçando, e repetindo ad nauseum o slogan de que se tinha
“virado a página da austeridade”, só que a verdade
vem sempre ao de cima e, conforme foi ficando mais difícil dizer que
todas as culpas eram do governo anterior, as demissões em cadeia nos hospitais
do SNS, a degradação dos serviços ferroviários, a diminuição da ação social
escolar, até a diminuição do investimento em ciência, só para dar alguns
exemplos, foram tornando evidente o que alguns teimosos andavam a dizer desde o
início. Por um lado, a recuperação econômica que houve não serviu para aliviar
a carga fiscal, antes pelo contrário, pois esta nunca foi tão elevada – os
portugueses pagam hoje é mais impostos indiretos e menos impostos diretos, o
que cria a ilusão do “devolução de rendimentos” e nos deixa um sorriso amarelo
nos lábios quando ouvimos o primeiro-ministro a alertar para que não nos
iludamos com os números.
Por outro lado, a fatia de
leão do dinheiro que houve disponível, quase dois mil milhões de euros, foi
para os rendimentos e as trinta e cinco horas dos funcionários públicos, e por
isso faltou para o resto, até para os consumíveis mais elementares de alguns
hospitais.
E o pior é que ao fim de três
anos de “sucesso” da geringonça as suas clientelas querem mais. É natural, eu
diria mesmo que é humano. Para além disso, também é disso que se faz a
política. Tudo porque a ilusão que se alimentou, o “fim da austeridade”, só
podia trazer consigo o regresso ao “antigo regime” e às suas carreiras
públicas, àquele regime que é em boa parte responsável pela sofreguidão do
“monstro” e pela dificuldade de conter o seu crescimento.
Naturalmente que as “contas
certas” de Bruxelas são tão conciliáveis com o regresso a essa velha ordem como
as trinta e cinco horas no SNS eram conciliáveis com o não aumento da despesa
pública, como mentirosamente foi prometido ao Presidente da República, e este
fingiu que acreditou. Mas neste jogo de ilusões e mentiras foi-se criando pelo
caminho um problema chamado “expectativas” – logo um senhor problema, pois a
política é muito a arte de gerir expectativas.
Pior: no dia em que o PCP
percebeu que podia ser o grande perdedor neste negócio de luzes e sombras – e
esse dia foi o da derrota nas autárquicas, quando perdeu dez municípios, alguns
deles emblemáticos, para o PS – tornou-se evidente que iríamos assistir a um
regresso em força da máquina da CGTP. A surpresa é que quando isso aconteceu a
CGTP, em alguns setores, já estava a ser ultrapassada por novos atores
sindicais, pois a natureza tem horror ao vazio e o mal-estar já se tinha
instalado e outros ganham ordem de precedência.
Um bom exemplo desse mal-estar
e das suas consequências é o sucesso da greve dos enfermeiros. Não tenho
opinião sobre o que reivindicam por comparação com as outras categorias
profissionais, mas percebe-se que estão mobilizados, que conseguiram contornar
os circuitos dos sindicatos tradicionais e da CGTP e que, apesar da barragem de
críticas de políticos e comentadores, não há sinais de tensão entre os utentes
e os enfermeiros nos hospitais e centros de saúde.
Mas se tudo isto se passa no
universo da Administração Pública, que dizer quando saímos para fora desse
ambiente protegido? Esta semana foram conhecidos números muito reveladores:
entre 2011 e 2017 o salário médio no setor público subiu duas vezes mais depressa do que no privado. No primeiro 6%, no
segundo 3%. E a partir de 1 de janeiro no setor privado, onde vigoram as quarenta
horas semanais, o salário mínimo será de seiscentos euros, enquanto no setor
público, com um regime de trinta e cinco horas semanais, será de seiscentos e
trinta e cinco euros. O que significa que um trabalhador não qualificado mais
mal pago no público ganhará mais 21% do que um trabalhador equivalente no
privado. E com mais segurança no emprego. Aparentemente é assim que se conjuga
“igualdade” quando as esquerdas estão no poder.
É certo que nem todos –
felizmente – ganham o salário mínimo, mas quando o Estado, que emprega apenas
14% dos trabalhadores ativos, absorve com as suas diferentes funções (incluindo
as sociais, bem sei) quase metade da riqueza nacional, o que sobra para a
economia, para as empresas, não permite milagres.
É por isso extraordinário que
um primeiro-ministro que, há um ano, na sua mensagem de Natal, tinha prometido
“mais crescimento” (o crescimento diminuiu) e “melhor emprego”, com os
resultados que estão à vista no depauperado sector privado, venha agora dizer
que as empresas “têm de ser competitivas a recrutar e a valorizar a carreira
dos seus quadros.” Pois têm, mas para isso o Estado não lhes pode sugar todos
os recursos, não pode continuar a fazer orçamentos que não são amigos do
investimento e do crescimento, não pode continuar a criar taxas e taxinhas que
tornam Portugal muito menos competitivo fiscalmente do que países da nossa
escala e campeonato.
E assim regressamos ao “virada
a página dos anos difíceis”, sinal também de que se receia mesmo que outros
anos difíceis venham aí. Este crescimento anêmico não é um dado adquirido e,
mesmo que fosse, é curto para acorrer a tudo o que já está comprometido para os
anos que aí vêm e muitíssimo curto se pensarmos nas expectativas criadas pelo
discurso das reversões sem limites e dos direitos para a eternidade. Qualquer
solavanco é o desastre do artista, até porque ao contrário dos direitos não há
cativações para a todo o sempre.
António Costa quer acalmar os
parceiros – mas também já percebeu que há demasiados gênios e maus espíritos no
ar. Não se incendiaram aos primeiros coletes amarelos, mas ninguém conhece o
dia de amanhã.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
27-12-2018
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